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22/02/2022 às 19:24

Fotos, filme e álbum musical para seguir sendo abençoado por vó Francisca

A centenária chapadense partiu, mas se eternizou por meio de registros culturais e pela marca que deixou no coração das pessoas

Priscila Mendes

Fotos, filme e álbum musical para seguir sendo abençoado por vó Francisca

Foto: Henrique Santian

Aquela que iluminava a todos aqui na Terra, vó Francisca, se fez luz. A benzedeira e parteira Francisca Correa da Costa partiu no último sábado (19), mas segue eterna aqui nas memórias, nos ensinamentos e, sim, em alguns registros culturais em homenagem a ela - felizmente - lançados em vida. Você já pode acessar a exposição fotográfica “A Fé de Francisca” neste link, bem como ouvir o álbum musical homônimo nas principais plataformas de áudio e, de quebra, ser abençoado pela benzedeira centenária.

Sim, porque os sorrisos, as mãos, as músicas, as rezas, tudo isso é bênção, é manifestação de fé, é propagação do amor de vó Francisca, tão respeitada pelos chapadenses, pelos mato-grossenses e por gente de toda parte.

Francisca Correa da Costa nasceu em 8 de outubro de 1913. Superou as epidemias de varíola e de gripe espanhola e a pandemia de covid-19. Completou 108 anos em 2021. Dormiu na sexta-feira (18) e não acordou no sábado. Partiu dormindo, tranquila, como sempre desejou. Atravessou.

Cabelos brancos, 1,45m de altura, sorriso enorme. Parteira desde os 10 anos, benzedeira desde sempre, distribuía vida e fé. Para ela, benzer é ajudar pessoas, “um dom dado por Deus”, dizia.



Nasceu em Lagoinha de Baixo, quilombo a 28 km de Chapada dos Guimarães, 25 anos depois do fim oficial da escravidão no Brasil. Mas conviveu muito de perto: os pais de Francisca foram escravizados nas primeiras fazendas de Sant'Ana da Chapada, nome anterior da cidade.

A singela casa onde Francisca vivia, na região central de Chapada, foi também o berço escolhido por ela para o velório, do jeito que gostava de estar: entre santos, velas e muito sincretismo entre o catolicismo e as religiões afrobrasileiras.

Sempre amou benzer, mas nos últimos anos estava reclusa, antes mesmo da pandemia, pelos riscos da prática diante da perda de visão e do manuseio com velas. Mas seguia dando conselhos, que também são rezas.

Mestra da Cultura

Vó Francisca partiu pouco menos de um mês após ter sido homenageada “mestra da cultura mato-grossense”. Título inconteste oficializado mediante aprovação do projeto transmídia “A Fé de Francisca”, proposto pelo fotógrafo documentarista e diretor audiovisual Henrique Santian, no edital “Conexão Mestre da Cultura”, realizado pela Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer (Secel/MT), com recursos da Lei Aldir Blanc.

Em quatro dias festivos, no Espaço Aldeia Velha - espaço cultural em Chapada dos Guimarães, foram pré-lançados o álbum musical autoral, com 14 faixas gravadas por artistas mato-grossenses ou outros com alguma relação com a homenageada; um documentário de média-metragem (47 minutos); uma exposição fotográfica virtual - com os registros de Henrique Santian; e uma intervenção urbana, por meio de colagem de cartazes divulgando o pré-lançamento e de lambe-lambes. Os dois cartazes foram montados por André Gorayeb, com arte de Mavi e Paty Wolff, a partir de fotografias de Santian.

O álbum musical pode ser ouvido aqui e neste link está toda a ficha técnica, especialmente a lista de artistas, formada por nomes como Vera Capilé, Deize Águena, Rogê Além, Estela Ceregatti, Luciana Bonfim e o produtor do disco, Paulo Monarco. Dá também para ser “benzido” por vó Francisca em duas faixas musicais.

As fotos - produzidas ao longo de anos de amizade entre Santian e vó Francisca - podem ser conferidas neste link. A galeria fotográfica digital tem curadoria de Oswaldo de Carvalho Junior, que selecionou mais de 30 fotografias, parte de acervo e parte inéditas.

Após a exibição no pré-lançamento presencial no Espaço Aldeia Velha, entre os dias 20 e 23 de janeiro, o documentário-videoarte seguirá resguardado, para participar de mostras e festivais. Em breve, será transformado em longa-metragem (de 1h a 1h15), para ser exibido em uma TV aberta, com a qual o diretor audiovisual Henrique Santian está negociando.

Mas você pode ver o teaser aqui:



O idealizador ainda fará um lançamento oficial e está aguardando o momento adequado para ter um número maior de pessoas. “Vai ser divulgado ainda. Todo mundo vai ficar sabendo, porque vai ser um grande evento”, contou Santian ao Entretê.

Henrique está em paz. Sabe que a amiga centenária cumpriu a missão dela e, aos olhos dele, ela esperava esse trabalho documental nascer para se despedir.

Tudo sobre o projeto transmídia “A Fé de Francisca” pode ser acessado em www.santian.com.br ou pelo perfil @afedefrancisca.

Primeiro o afeto, depois o registro



A amizade entre Santian e vó Francisca já era longa, quando surgiu a proposta de documentá-la no próprio cotidiano. E não partiu dele a ideia, ele não queria ser invasivo… Surgiu das conversas sobre perdas inevitáveis, à medida que os anos iam passando.

“Com o passar de muito tempo, suponho que uns cinco anos de amizade [...], tudo surgiu quando a Francisca começou a perder muita amiga [...] e teve uma época que ela só falava de morte”, contou Henrique.

Seguiu explicando que ela começou a dizer às amigas como queria seu velório e ela mesma sugeriu: “Henrique está aqui. Henrique pode fazer a filmagem pra ficar registrado disso que eu estou falando pra ninguém fazer errado”. Vó Francisca, à época, "exigiu" que o próprio velório fosse em casa, muito singelo, bem distante das pompas de uma figura pública chapadense.

Tempos depois, a “autorização” veio.

“Tinham os dias que eu ia lá pra cuidar da Chica. Ficar com ela, passar o dia lá. Francisca sempre ficava nesse transe de incorporação, de comunicação com a ‘turma toda’. Aí ela estava falando com o Preto Velho [...] e começou a falar umas coisas que eu não estava entendendo direito: ‘está bom, então esse trabalho está feito, muito obrigada por essa autorização, Henrique vai fazer esse registro’. Aí eu falei: ‘Chica com quem você estava falando?’. Ela falou: ‘Preto Véio, meu filho, Preto Véio. Pai Joaquim abençoou você pra fazer esse trabalho’".

E Henrique ia visitá-la, levava os equipamentos e registrava quando sentia que era o momento. Inicialmente, apenas fotografias. Depois, pequenas cenas do cotidiano.

“Eu falei: ‘Francisca, estou com meu equipamento no carro, se você autorizar, eu posso fazer uns registros seus’. E foi assim que nasceu, a partir dessa amizade, desse afeto, desse carinho, que a gente tinha um pelo outro. [...] Eu ficava na casa dela conversando por horas e começava a fotografá-la na natureza dela. Ficava ali, como se eu não existisse. [...] Sempre fui fotógrafo documentarista. Então, meu papel é traduzir a realidade da pessoa sem nenhuma interferência de direção. [...] Como Francisca falava muitas coisas interessantes que na fotografia não tem como traduzir de forma literal, eu comecei a fazer uns takes curtos. E ela falava, o tempo todo, pérolas e pérolas”.

Esses registros, essa amizade, essa admiração e tanto aprendizado geraram uma exposição fotográfica em 2018; um curta documentário (11 minutos), disponibilizado virtualmente em março de 2020, comecinho da pandemia; tal projeto transmídia em 2021/2022; gerará um longa metragem e muitas memórias.

Todas as fotografias desta reportagem são de Henrique Santian.
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