Falecido em 2011, Antônio Sodré é um importante nome da poesia brasileira feita em Mato Grosso. Entretanto, diferente de alguns de seus pares mais celebrados, não figura com o devido destaque no imaginário popular. Visando facilitar o acesso à sua obra e divulgar seu legado, o projeto “Acervo Audiovisual de Antônio Sodré” irá disponibilizar, em espaços físico e digital, tudo que diz respeito ao poeta cuiabano, inclusive uma seleção de manuscritos inéditos encontrados pela família após sua morte.
Além da compilação de parte desse material inédito deixado em aproximadamente 60 cadernos em espiral e brochura, serão disponibilizados seus livros já publicados, bem como informações pessoais, registros audiovisuais, canções gravadas e pesquisas acadêmicas acerca de sua vida e obra. Esse amplo acervo audiovisual será inaugurado em fevereiro de 2025. Por enquanto, os pesquisadores Luiz Renato Souza Pinto e Maurília Valderez, que também foram amigos de Sodré, se dedicam a um cuidadoso trabalho de curadoria, afinal se trata de um conjunto amplo e diverso de registros.
“Alguns cadernos já estão organizados como se fosse para publicação, outros são um misto de anotações filosóficas, ensaios literários, rasgos egocêntricos, repositório de memórias afetivas e apaixonadas, poemas eróticos, tradução de textos de outros idiomas, aulas de inglês, anotações em espanhol, lista de inadimplentes do sebo, poemas de autores variados para as exposições que montava”, comenta Luiz Renato. “Ele sai da poesia para um texto mais ensaístico, aí de repente um texto que faz abordagens mais sociológicas, políticas. Textos que são referências a outros escritores, enfim, uma pluralidade de linguagens. Isso é muito tocante”, complementa Valderez.
Ela explica que, além do valor artístico, o material como um todo traz consigo impressões digitais de sua época. “É um registro histórico no sentido em que ele, na poesia ou nos textos ensaísticos, registra também o seu tempo, de como o seu tempo o afeta, de como o seu momento histórico é operado, é trabalhado, enfim, é burilado por ele. É um poeta que dá à palavra um tratamento muito específico, que é resultado do modo como a vida lhe afeta, como a cidade, como as questões do momento o atravessam”.
Luiz Renato adianta que os cadernos não serão publicados na íntegra, afinal boa parte do conteúdo são anotações cotidianas que não foram concebidas com a intenção de serem publicizadas. E no que diz respeito ao aspecto artístico, relaciona o trabalho de curadoria com o de quem busca por pedras preciosas. “É a oportunidade de olhar para aquele material todo como um garimpeiro que, antigamente, ficava à beira do rio jogando sua bateia. O conjunto dos cadernos está cheio de pepitas, mas tem muita água suja também, precisa ser lavado. Nós garimpamos nesse manancial em busca de pequenas joias”.
Como os cadernos foram cedidos pela família de Antônio Sodré, nada será publicado sem o consentimento dos familiares. O principal critério, a princípio, é o caráter artístico. “Os que são só de poemas, só de textos literários, eu creio que sim [serão digitalizados e disponibilizados no acervo]. Tem poemas com quatro, cinco versões diferentes, com pequenas mudanças, troca uma palavra por outra. Isso é uma riqueza que a crítica genética pode ajudar a identificar essas mudanças de temperamento. É um verdadeiro rascunho da vida. Mas alguns cadernos estão muito misturados, esses têm que selecionar melhor”, avalia Luiz Renato.
A sistematização, digitalização e publicização do acervo de Antônio Sodré tornará sua obra mais acessível a leitores e pesquisadores em geral. “Ele ocupa um lugar muito importante no contexto da poesia que se faz em Mato Grosso, que se faz em Cuiabá. O acervo vai permitir que um número bem maior de pessoas possa ter acesso à poesia, aos textos, ao pensamento do Antônio. E que essas pessoas possam transformar esse acesso em produções acerca de sua obra”, observa Valderez.
Nesse sentido, a própria produtora executiva do projeto, Andressa Mendes, se inclui entre as pessoas que desconheciam sua obra e se encantaram logo no primeiro contato. “Depois de conhecer os cadernos, me apaixonei. Acho muito relevante trazer essa obra à tona, publicizar esse material porque muitas pessoas ainda não o conhecem. Acho que pode tocar e transformar muitas vidas”, avalia.
O projeto “Acervo Audiovisual Antônio Sodré” foi selecionado pelo Edital Fornada, na categoria “Apoio aos Acervos Existentes ou em Fase de Organização”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Cuiabá.
Antônio Sodré
“El poeta de la transmutácion”, como se autointitulava, nasceu em 1959, em Rondonópolis (MT). Filho de comerciantes vindos da Bahia, se mudou para Cuiabá em 1977, onde viveu até o final de sua vida no bairro Pedregal. Chegou a ingressar nos cursos de História, Letras e Música da UFMT, mas não concluiu. Foi nesse período que conheceu Valderez, então professora de filosofia da instituição.
“Ele frequentou algumas disciplinas que eu ministrei. Antônio não conseguiu terminar nenhum curso, mas isso não é demérito, pelo contrário, ele era muito veloz no pensamento e ficar preso numa sala de aula com essa disciplina do tempo, do corpo e do pensamento não se adequava ao modo como a vida o habitava ou como ele habitava a vida. Antônio precisava de espaço, de ar, e de pessoas que compartilhassem com ele a sua forma de sensibilidade do mundo”, reflete Valderez.
Embora não tenha concluído a graduação, nunca abandonou a universidade. No campus, mais precisamente no Instituto de Linguagens, manteve uma banca de livros por mais de 20 anos, pela qual estabelecia vínculos afetivos e literários com diferentes gerações de estudantes. Hoje o espaço da banca foi batizado com seu nome e nas paredes do saguão figuram alguns de seus poemas.
Além de poeta, transitava pela música, artes cênicas e artes plásticas, consolidando-se como um expoente da cena cultural cuiabana a partir da década de 1980. Foi um dos membros do lendário grupo multiartístico Caximir, ao lado do próprio Luiz Renato e outros importantes nomes, como Antônio Carlos Lima (Toninho), Eduardo Ferreira, Amauri Lobo, Anna Amélia Marimon, Capilé Charbel e outros. Deixaram dois álbuns gravados e muita história.
No campo literário, Antônio publicou os livros “Besta Poética” (1984) e “Empório Literário” (2005), além da antologia post-mortem intitulada “Cuiabaratotal” (2021), primeiro fruto do trabalho de pesquisa e curadoria feito em parceria por Valderez e Luiz Renato.
Sodrezinho, como era chamado pelos mais próximos, não é o único artista da família. Seu irmão, Adir, deixou o sobrenome Sodré registrado nas artes plásticas brasileiras. Antonio faleceu há 13 anos, no dia 19 de fevereiro de 2011, aos 52 anos de idade. Quase uma década depois, no dia 10 de agosto de 2020, Adir também partiu, aos 58 anos. Ambos vítimas de infartos fulminantes.
Da assessoria