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Notícias / Cultura Popular

31/10/2025 às 11:00

LENDA URBANA

Três amigas, um ônibus e a história da madrugada cuiabana no início de sua modernização

Em alusão ao Halloween, o Entretê traz a história da saudosa Dunga Rodrigues eternizada pelo projeto Circle, responsável por populariza as lendas, que sinalizam os perigos das cidades e refletem traumas

Guilherme Sampaio

Três amigas, um ônibus e a história da madrugada cuiabana no início de sua modernização

Foto: Projeto Circle

No trajeto Porto-Centro, três jovens, ainda muito moças, embarcam na traquitana conduzida por Seu Berilo. Mortas pela incurável tuberculose da década de 1920, as almas, inconformadas com a partida precoce, faziam passeios pelas ruas e avenidas escuras da cidade mato-grossense.

Sempre próximo da meia-noite, as almas pálidas, de olhos fundos, vagavam neste plano material, vivendo o pós-morte entre os vivos por apego aos bens e às pessoas que deixaram. Essa é a história que assombrava os primeiros coletivos que chegaram à cidade.

Já imaginou compartilhar o mesmo ônibus com essas jovens, tarde da noite?

A sensação de que, a qualquer momento, poderia encontrar Rosa, Lucila e Maria deixava todos atentos ao caminhar pelas ruas do Centro Histórico ou pela região do Porto.

A maior novidade tecnológica do momento fazia a sociedade do início do século 20 se escandalizar, ao mesmo tempo em que temia ser abatida pela tísica — conhecida mais tarde como tuberculose. Veículos menores e particulares, movidos a combustão, atraíam o olhar curioso dos vivos e... dos mortos.

Contemporânea desse contexto, Dunga Rodrigues — escritora, jornalista e professora, nascida em 1908 — decidiu registrar em seu livro “Lendas de Mato Grosso” as histórias que ouvia do pai e aquelas colhidas de pessoas que afirmavam ter vivenciado experiências sobrenaturais.

Tendo a oralidade como principal meio de divulgação de narrativas que deixam qualquer um de cabelo em pé, o manuscrito compila as histórias de todos aqueles, aquelas ou “coisas” que assombram o imaginário mato-grossense — entre elas, a das três jovens que compartilharam em seu leito de morte a “doença do peito” como motivo de partida.

Três passageiras

De boca em boca, os cuiabanos compartilham histórias e boatos sobre aparições fantasmagóricas que ocupam o Centro Histórico da cidade. Em uma noite escura e silenciosa, numa sexta-feira, ao fim do itinerário de Seu Berilo, três moças pedem para subir na condução, na região do Porto.

Com a lua minguante no céu, as três meninas sobem em silêncio e pedem para seguir viagem até o Centro. Sentadas no banco da frente, exibem fisionomias pálidas, sem expressão, e olhos fundos. Magras, vestidas de branco, em rendas delicadas, pareciam ter saído do próprio velório. A linguagem corporal era absorta, pasmada, alheia à realidade.

Ao observá-las pelo retrovisor, Berilo sente arrepios e uma estranha sensação de medo. Pensa, intrigado: “Para onde essas meninas vão a uma hora dessas?”
Transitando sozinhas pelo Centro, elas pareciam admirar cada prédio, cada lampejo de luz e o movimento tranquilo dos automóveis.

Com a madrugada avançada, o velho motorista chega ao fim da viagem e o trio, enfim, deveria descer.

Chegando à última parada, ele toma coragem:

— Vocês não vão descer?

Silêncio. Elas apenas desapareceram. Sumiram do banco como poeira na noite.

Naquele instante, o motorista recordou as histórias sobre jovens que morreram de paixão — uma forma de aliviar a tragédia que a tuberculose impôs às famílias cuiabanas. E entendeu que aquelas passageiras não pertenciam mais a este mundo.


Essa história está no livro “Lendas de Mato Grosso”, de Dunga Rodrigues (1908–2001), que compilou e registrou centenas de lendas e histórias que assustam muitos até hoje. As três meninas do ônibus seguem lá — eternizadas nas páginas e nas noites cuiabanas.

Projeto dá voz à oralidade

Para lembrar e guardar o legado dessas histórias, o professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Aclyse de Mattos, criou o projeto “Circle”, que busca popularizar as lendas urbanas e mitos da Baixada Cuiabana, extraídos da obra de Dunga.

“O objetivo primeiro é resgatar a literatura como forma de arte e expressão básica para outras artes, mas é inevitável que o aspecto narrativo seja fundamental. Também buscamos valorizar a cultura do local onde vivemos — por isso, as lendas escolhidas pertencem ao nosso cenário cotidiano”, explica Aclyse.

Com apoio dos alunos, o projeto recolhe e organiza lendas para oferecer novos estilos de contá-las às novas gerações, de modo atualizado. O estudo do grupo conecta tradição e juventude em performances, leituras e reflexões sobre o medo que nos habita — e que está mais próximo do que imaginamos.

Em entrevista, Aclyse fala da importância do resgate da oralidade como forma de contar histórias e explica como as lendas nascem:“As lendas são anônimas, surgem dentro de uma cultura pela passagem de um contador a outro, de forma oral. Temos lendas muito ‘carimbadinhas’, especialmente quando têm a ver com a região onde vivemos.”

Ele também lembra que as lendas, sejam urbanas ou mitológicas, têm um componente educacional, motivado pelo medo ou pela moral da história. Aclyse acredita que as lendas urbanas sinalizam os perigos das cidades e refletem traumas — porque toda cidade guarda seus segredos.
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