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Notícias / Entrevista da Semana

27/06/2021 às 08:15

Dia do Orgulho: Clóvis Arantes fala de conquistas e de demandas da comunidade LGBTQIA+

Diretor do Grupo Livremente celebra a sobrevivência da população e denuncia ausência estatal

Priscila Mendes

Dia do Orgulho: Clóvis Arantes fala de conquistas e de demandas da comunidade LGBTQIA+

Foto: Leiagora

Clóvis Arantes é ‘velha-guarda’ da luta LGBTQIA+ em Mato Grosso. Chegou no Estado tentando fugir de sua orientação sexual e percebeu que não se foge de quem se é. Em 1995, apenas para se socializar, fundou, junto com outros cinco amigos, o Grupo Livremente (GLM). Mas percebeu que, para a população LGBTQIA+ não basta se encontrar para celebrar alegrias, é preciso juntar forças para lutar por direitos.
 
O GLM, com quase 26 anos, é o grupo de Mato Grosso mais antigo em atividade, que abriu caminhos para tantos outros, cada coletivo apresentando as demandas de acordo com as especificidades de cada letra: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, pessoas queer, pessoas intersexo, assexuais e outras identidades de gênero ou orientações sexuais abraçadas pelo símbolo de ‘mais’.
 
O Leiagora entrevistou, esta semana, Clóvis Arantes – diretor de Comunicação do GLM, para marcar o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, em 28 de junho. Uma data que nasceu de muita violência – assim como são os dias dessa população: até a década de 1960, em Nova Iorque, nos Estados Unidos, relações entre pessoas do mesmo sexo eram ilegais e os casais homoafetivos se refugiavam em bares e clubes. Por outro lado, quando descobertos, sofriam muitas agressões pelos policiais da época.
 
Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova Iorque tinha um mandado para inspecionar o bar Stonewall Inn e prendeu 13 pessoas. Por conta do tratamento agressivo dos policiais, membros da comunidade LGBTQIA+ e outras pessoas foram se juntando no local e, reagindo à prisão violenta de uma mulher, foi iniciada a chamada Rebelião de Stonewall.
 
O entrevistado da semana fala das demandas da população LGBTQIA+ e os avanços conquistados.
 
Leiagora – Em que contexto foi criado o Grupo Livremente?
 
Clóvis Arantes - O Grupo Livremente nasce do desejo de pessoas que não tinham muita referência para dialogar sobre as questões da homossexualidade. Naquela época, era muito mais difícil que agora. A gente forma um grupo de seis pessoas e fala: ‘olha, vamos montar um grupo pra gente construir uma socialização, lazer e tudo mais’. Com o passar do tempo, a gente percebe que um grupo que trabalha com direitos humanos da população LGBT precisava também dialogar sobre muitas questões, né? Falta de trabalho, questão da educação, da saúde... Então, o Livremente ganha visibilidade, porque a gente começa a ir para a imprensa, organizar seminários, participar de chamadas por outras instituições. Aí a importância de a gente ter um grupo que faça com que a gente tenha orgulho, porque a gente começa a se entender e falar ‘eu posso estar em qualquer lugar, não é minha orientação sexual que vai me impedir’. O grupo Livremente ajuda a termos orgulho de sermos e estarmos no nosso lugar, com a nossa corporeidade, sem que a gente tenha que deixa-la no armário para poder ir para qualquer atividade.
 
Leiagora - Fale um pouco sobre sua trajetória no movimento LGBTQIA+, enquanto homem gay.
 
Clóvis Arantes - Eu venho do Paraná fugindo da minha orientação sexual. Eu era jovem, igrejeiro - eu militava na igreja, eu não lidava de forma tranquila com minha orientação sexual. Eu escolho um lugar muito distante, porque eu queria exorcizar a minha orientação sexual, o meu desejo. Aí eu vou morar em Peixoto de Azevedo, onde só tinha garimpeiro e prostituição. 'Bom, aqui eu vou ficar bem no armário'. Pelo contrário, eu chego a Peixoto do Azevedo e passo a entender que a minha orientação sexual ia comigo para onde quer que eu fosse. Eu fiquei em Peixoto de Azevedo por cinco anos, eu tinha terminado o Magistério, comecei a dar aula e a militar no Sintep [Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público de Mato Grosso] e, em 1989, eu participo de uma eleição para tesoureiro do Sintep/MT e venho transferido para Cuiabá. Já em Cuiabá, uma cidade maior, eu tenho um pouco mais de coragem de dar mais visibilidade para minha orientação sexual. Porque, queira ou não, você, na adolescência, começa a pensar 'eu sou errado e preciso me ajustar ao padrão de normalidade que a família, a igreja, o trabalho vão colocando para você. (...) Aí eu conheço o movimento nacional, através da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais) e começo a perceber que tinha muita coisa que a gente podia dialogar, a gente tinha muito a construir e que não era simplesmente uma orientação sexual, era questão de vida mesmo. Infelizmente, a universidade não prepara para lidar com a questão de nossos direitos, enquanto pessoa LGBTQIA+. E a gente vai para a sala de aula sem saber como fazer o trabalho, sem saber como acolher. A gente começa a discutir mais abertamente a questão dos direitos humanos da população LGBTQIA+. Eu entro na direção da ABGLT, aí eu vou para representar a ABGLT no Conselho Nacional de Políticas Públicas para a Populaçõa LGBTQIA+ e em Mato Grosso a gente segue fazendo um trabalho de formiguinha, porque é um Estado muito conservador, de uma dimensão territorial muito grande, a gente não consegue chegar aos municípios... e a gente começa a ser acessado como referência para as pessoas que sofrem violência. E começa a criar canais de pra fazer a ponte entre a pessoa LGBTQIA+ em vulnerabilidade com os equipamentos de estado ou com os equipamentos do município: saúde, educação, segurança pública.
Evidente que vem surgindo novos atores... o grupo Livremente naquela época ficava muito solitário, hoje nós temos vários grupos no Estado, têm muitas pessoas que falam sobre, independentemente de estarem em uma organização, tem muita coisa sendo produzida pela Academia... E a gente deixa de ser solitário e passa a ser uma coisa mais coletiva... a Parada dá um ‘up’ nessa visibilidade...
 
Leiagora - Você pode citar alguns desses grupos e a quem eles representam aqui em Mato Grosso?

Clóvis Arantes - A gente tem a Astramt, que é a Associação de travestis de Mato Grosso, a Associação de Homossexuais de Sorrisos, a Associação de Travestis de Rondonópolis, em Primavera [do Leste] tem um coletivo de mulheres trans que dialogam com a questão da população com HIV/AIDS... e vários atores [sociais]: a União Nacional dos Estudantes, a Adufmat, o Sintep, a CUT, a própria OAB abre uma comissão de diversidade... Os defensores também formam um coletivo de Defensores da Diversidade, a gente ganha um parceiro muito importante que é o Ministério Público, na pessoa de Dr. Henrique Schneider. Os vereadores... mesmo que a gente tenha uma parcela muito grande de fundamentalistas, a gente já consegue mapear no Estado alguns parlamentares que levam a pauta LGBT como bandeira. Aí tem o coletivo Mães Pela Diversidade... a gente costuma dizer: ‘uma mãe, quando sai do armário, salva muitas vidas’. E outros espaços... a gente conseguiu criar, há três anos, o Conselho Municipal de Diversidade Sexual em Cuiabá, um espaço novo em que a gente faz a discussão com os gestores. E a gente só cresce no diálogo, no embate, no enfrentamento!
 
Leiagora - Dia 28 de junho é Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Por que é importante esta data mundial e qual é o tema nacional colocado em evidência neste momento?

Clóvis Arantes – O dia 28 para nós é fundamental, porque é o dia em que aconteceu a grande revolta de Stonewall, em que foi marcado para a população mundial como o momento em que a gente diz ‘basta de violência!’, a gente precisa se levantar contra a violência. Nacionalmente, a gente está com a bandeira ‘LGBTfobia é crime, vamos construir cidadania’. São dois aspectos: reforçar a questão da criminalização da LGBTfobia e a luta pelos direitos. É um dia de celebração, a gente celebra a vida... porque, quando se é LGBTQIA+, a gente precisa celebrar a vida todos os dias, porque, por exemplo, a expectativa de vida de uma mulher trans, de uma travesti, é de 35 anos. Cada momento é para celebrar, principalmente neste momento de pandemia, que nós temos mais de 500 mil pessoas assassinadas pela falta de políticas sérias para combater a covid-19. E a nossa população [LGBTQIA+] está sofrendo muito, porque já tem uma vulnerabilidade muito grande por falta de emprego e nós estamos nos lugares da economia informal.
 
Comemorar o dia 28 é para celebrar, mas também é o dia da denúncia, de dizer que a nossa população continua sendo violentada, continua morrendo e continua sem direitos. Nós não temos nenhuma legislação no Brasil que tenha sido feita especialmente para a população LGBTQIA+. O que nós fazemos? Nós tivemos que recorrer à judicialização. Nós judicializamos todas as nossas bandeiras – e o Judiciário respondeu de forma positiva – para que a gente garantisse a criminalização [da LGBTfobia], a união estável [entre pessoas do mesmo gênero], doação de sangue... Graças ao Judiciário, porque, pelo Congresso Nacional, a gente nunca teve sequer colocado em pauta questões específicas da população LGBTQIA+. Pelo contrário, nossa pauta é sempre colocada como moralista. A questão do machismo, do kit gay, que foi jogado naquela época para dizer ‘eles querem colocar o kit gay na escola’, a questão dizer que a gente quer acabar com a família... Muito pelo contrário, a população LGBTQIA+ luta para que a gente tenha direito de ser família. Nós só não lutamos para ser a família Doriana. Nós entendemos que família é aquela que escolhemos e que tem de ser do jeito que nós entendemos que vai nos fazer feliz.
 
A gente escuta um deputado Cattani dizer as besteiras que ele diz nas redes sociais e fica pensando o que essas pessoas imaginam que a população LGBTQIA+ faz 24 horas por dia, porque é colocado como se a gente pensasse só em sexo. Tentam nos descaracterizar enquanto ser humano. Nesse momento, é fundamental dizer: ‘nós temos família, nós queremos construir família, nós queremos trabalho, educação, saúde, queremos continuar também decidindo os rumos de nosso país’... Nós temos um projeto de sociedade, em que não cabe a LGBTfobia, não cabe o machismo, o racismo... e nós precisamos dizer isso para a população [em geral]: ‘Não basta dizer que queremos existir! Nós queremos existir, mas com qualidade de vida, queremos construir uma cidade que nos acolha, que nos permita o afeto’.
 
Leiagora - Você citou dois assuntos que vamos resgatar. Primeiro, sobre o alto índice de mortalidade das pessoas trans e das travestis. O Brasil é o país em que mais se mata pessoas trans no mundo. Por que isso acontece, do ponto de vista cultural, e o que está sendo feito para combater isso?

Clóvis Arantes – Efetivamente, nós não temos políticas de promoção e de prevenção, principalmente no Brasil, e a gente vê a escalada de violência crescendo. Com a impunidade, as pessoas se sentem autorizadas a violentar. Nós tivemos, há três semanas, um jovem de 22 anos, que mora num bairro da periferia e ele foi açoitado por moradores que diziam, quando estavam batendo nele, ‘aqui é lugar de macho, você não vai estragar a nossa comunidade’. O índice de violência é muito alto, as mulheres lésbicas continuam sendo vítimas de estupro corretivo, as mulheres trans e as travestis continuam sendo assassinadas, porque as pessoas entendem que ‘não é normal’. O que se tem: quando há um padrão social de ‘normalidade’, a gente precisa destruir, exterminar tudo que ‘não é normal’. Então, a violência no Brasil e no mundo contra a população LGBTQIA+ é muito alta. No período de pandemia, com o isolamento e tudo mais, aumentou em 43% o número de casos de violência contra a população LGBTQIA+. Dá para concluir que temos a ausência do Estado – o Estado não faz a parte dele! – e existe a falta de uma rede de proteção social: a família... uma pessoa, quando tem o apoio da família, ela tem força para lutar contra o mundo, mas quando ela não tem, ela perde em potência, ela fica mais vulnerável. Por que as travestis morrem mais? Porque as travestis estão em lugares mais vulneráveis... Grande parte das travestis está na prostituição, mas não é porque elas escolheram, muitas vezes é o que sobrou, é o único espaço que sobra... muitas vezes, nós [da população LGBTQIA+] estamos no subemprego... é esta lógica excludente, violenta, que acaba colocando a nossa população em maior vulnerabilidade. Aí imagina uma travesti, negra, da periferia, em situação econômica precária, você tem uma pessoa que está três vezes mais vulnerável. E ainda tem a violência do Estado, né? Porque, quando o Estado não tem políticas públicas, ele está negligenciando o próprio papel, que é o de fazer essa prevenção e essa proteção. Se o Estado não protege, quem é que vai proteger? O aumento da violência se dá pela ausência do Estado, pela ausência de políticas públicas.
 
Leiagora – Agora sobre dois casos recentes de Mato Grosso. Um é o caso que você já citou, do deputado estadual Gilberto Cattani (PSL/MT), que afirmou, por meio das redes sociais, que “ser homofóbico é uma escolha, ser gay também” e o outro é o padre Paulo Antônio Müller, de Tapurah, que chamou de ‘viadinho’ um homem gay depois de uma publicação de Dia dos Namorados e deslegitimou o casamento homoafetivo. Você pode comentar os casos e como o grupo Livremente atuou?

Clóvis Arantes - Sim... É importante dizer que a gente não pode criminalizar as respectivas instituições. Nesses dois casos, eles são fundamentalistas, porque, inclusive, a gente tem a posição do Papa Francisco dizendo que se precisa acolher, viver o evangelho [cristão] e tudo mais. Mesma coisa do Cattani – não é a instituição [Assembleia Legislativa de Mato Grosso]. Mas a instituição vai ter que punir, porque, quando ele fala, ele fala pela instituição também, já que foi eleito para ela. Quando o padre fala, ele está fala pela instituição. Essas instituições precisam se pronunciar.
 
Nos dois casos, nós acionamos o Ministério Público. No caso do Cattani, a gente entrou também com uma ação coletiva na Comissão de Ética da Assembleia, pedindo a cassação do mandato, porque o que ele fez foi quebra de decoro. Ele também apresentou projetos na Assembleia Legislativa da Escola Sem Partido, escola sem ideologia... E na questão do padre, também não é primeira vez que ele faz isso. Eles são dois expoentes, mas Mato Grosso está muito complicado. Em Cáceres, agora, a vereadora Mazé está sendo massacrada, porque ela apresentou um projeto de criação de um centro de referência... As pessoas estão se sentindo autorizadas, a gente precisa trazer isso para a discussão. É um momento que o governo federal... um governo genocida, machista, racista, que não entende que as pessoas têm direito à vida e nega isso... então, as pessoas estão se sentindo autorizadas... Se você entra na internet hoje, tem uma enxurrada de agressões. O Cattani fez aquela atitude e, em seguida, um vereador da Câmara de Cuiabá apresentou a indicação para ele receber um título de cidadão cuiabano. Olha que lógica mais perversa: o cara comete um crime, faz apologia à violência contra a população LGBTQIA+ e um vereador de Cuiabá indica o cara para receber um título de cidadão. Então, é uma violência que vai só ganhando tamanho e se a gente não se cuidar, não vai poder sair de casa.
 
Leiagora - Neste dia 28, há o que comemorar? Quais são os grandes avanços para a comunidade e o que ainda precisa ser feito?

Clóvis Arantes – Há o que comemorar, sim, porque nós estamos vivos, vivas, nós somos muitos, muitas e nós estamos em todos os lugares. As pessoas vão ter que nos engolir mesmo! Cada dia mais a população LGBTQIA+ negra, de periferia está assumindo espaços... nas últimas eleições, nós crescemos 70% em número de vereadoras eleitas com a pauta LGBTQIA+, então, a gente precisa comemorar, sim. Comemorar a vida! E quando a gente tem um governo genocida, que não valoriza a vida, a gente tem que dizer: ‘vacina no braço, comida no prato e muita resistência!’.
 
Nós vamos fazer uma audiência pública no dia 28 na Assembleia Legislativa, às 9 da manhã, e essa audiência é justamente para a gente, enquanto sociedade civil, trazer para a Assembleia Legislativa a nossa pauta, de forma organizada, de forma política... porque o nosso corpo é político e tem que ser, 24 horas por dia, porque a nossa existência no mundo já é uma existência política. Então a gente vai celebrar, vai denunciar e vai propor políticas públicas na Assembleia Legislativa, nessa audiência.
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