Não acolhimento de notas técnicas, trechos de redação passíveis de múltiplas interpretações, possibilidade de permitir a entrada de atividades poluidoras no Pantanal, excluir as comunidades indígenas, quilombolas, assentados da reforma agrária e ribeirinhos pantaneiros das discussões são alguns dos problemas elencados em audiência pública realizada nessa quinta-feira (30), para debater o Projeto de Lei Nº 561/2022, que altera a Política Estadual de Proteção do Pantanal.
Diante disso, os deputados estaduais Lúdio Cabral (PT) e Wilson Santos (PSD) vão tentar um acordo com o deputado estadual Carlos Avallone (PSDB), autor da proposta, para retirar de pauta o PL 561/22 até a realização de consulta pública aos povos tradicionais do pantanal, conforme previsão do Decreto Federal 5.051 de 2009.
Caso não consigam interromper a tramitação do projeto, que já foi aprovado em primeira votação e segue com dispensa de pauta - portanto, já pode ser votado em segunda na próxima semana -, Lúdio e Wilson preparam emendas para tentar corrigir as falhas apontadas durante audiência pública.
“Temos que trabalhar com base na realidade. Vou encaminhar a recomendação da audiência para que a tramitação seja suspensa e tenhamos tempo de fazer o debate com profundidade. [...] Se não houver essa compreensão por parte do plenário, nós vamos deixar as emendas prontas e apresentá-las, para que possamos fazer a defesa de cada uma delas”, afirmou Lúdio Cabral.
O deputado Wilson Santos salienta que aprovar este projeto de lei sem a realização da consulta pública pode ocasionar problemas futuros, como a derrubada judicial da nova legislação, invalidando qualquer luta dos pecuaristas da região. “Eu defendo que nós precisamos prolongar a discussão, alongar mais. [...] Caso isso não aconteça, existe legislação superior que pode ser provocada e todo esse trabalho aqui ser anulado”, ratificou Wilson.
Pecuária como justificativa
A justificativa para criação do PL 561/2022 é incentivar o retorno da atividade pecuária ao Pantanal. Em várias entrevistas, o deputado Carlos Avallone e o deputado Allan Kardec, autores da proposta, afirmam que a principal meta é liberar a limpeza do pasto, delimitando condições para não causar impactos negativos ao Pantanal.
A Lei Estadual 8.830, Lei de Proteção ao Pantanal, de 2008, já determinava que caberia ao governo do Estado regulamentar essa limpeza do pasto. Contudo, somente 13 anos depois isso foi feito, no decreto 785 de 2021, e durante esse período os pecuaristas ficaram impossibilitados de fazer a limpeza legal dos campos.
Desde o ano passado, os criadores de gado já têm autorização para fazer a limpeza depois de conseguir uma licença, bem como utilizar fogo de forma prescrita como forma de reduzir a biomassa que se torna combustível para queimadas de grandes proporções, como aconteceu em 2020. Contudo, os pecuaristas ainda afirmam, no entanto, terem problemas com a demora e o alto custo para conseguir a autorização para limpar o campo.
“A grande dificuldade para os pecuaristas conseguirem uma autorização de limpeza é a dificuldade técnica. Um estudo técnico que demanda um custo elevado e a maioria das propriedades não tem condição de bancar esse estudo. A maior parte das propriedades e criação de gado em Mato Grosso possuem menos de 250 cabeças de gado”, afirmou Ricardo Ferreira Arruda, presidente do Sindicato Rural de Poconé e membro da diretoria da Associação dos Criadores do Pantanal (Acrimat).
(Des)Subsídio da Embrapa
Para a construção do Projeto de Lei 561, foi contratada uma consultoria da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que fez emitiu nota técnica para traçar os limites do gado dentro do Pantanal de forma permitir uma recuperação econômica e social sem prejudicar o meio ambiente. Isso foi somado a outras notas técnicas da Embrapa que haviam sido contratadas pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema).
Contudo, parte das recomendações não foram seguidas, ou então foram alteradas. O especialista em áreas inundáveis Walfrido Moraes Tomas, pesquisador da Embrapa Pantanal desde 1990, pontuou nas notas técnicas que é adequado um limite entre 30% e 40% de gramíneas exógenas para o manejo do pasto, bem como permitir por no máximo 60 dias a entrada do gado nas áreas de conservação permanente.
Essas duas recomendações não constam no PL Nº 561/2022, ficando livre, ou a cargo de regulamentação por decreto, os limites de gramíneas exógenas que podem substituir a pastagem nativa, e liberada a presença de gado em toda área de preservação permanente do Pantanal.
Embrapa: boi não é bombeiro
O próprio representante da Embrapa Pantanal, Walfrido Moraes, ressaltou que apesar do gado ser um agente de controle da biomassa na área do pantanal, ele tem uma função menor na prevenção de grandes incêndios. Isso porque das mais de 2 mil espécies de plantas nativas da região, o boi consome menos de 90. “E ainda das espécie que ele se alimenta, só come o que é palatável”, ressaltou.
Por isso seria importante regulamentar a queimada controlada, outra recomendação não implementada no projeto de lei. De acordo com as notas técnicas da Embrapa, o ideal é o uso do fogo para controle da biomassa através de um licenciamento com planejamento trienal. Isso é baseado no conhecimento tradicional do chamado “queimar no cedo”, que se trata do atear fogo em áreas de campo logo após o fim das chuvas, quando o nível de água ainda está alto.
Entretanto, o projeto de lei não trouxe a delimitação legal da quantidade da gramínea natural que pode ser substituída por uma exógena do Pantanal, nem delimitações sobre o quanto.
Quem quer ouvir o pantaneiro?
Apesar de durante o processo de construção do Projeto de Lei Nº 561/2022, que começou em janeiro desde ano com o Projeto de Lei Nº 03/2022, ser alegada a importância de ouvir o pantaneiro, a participação se deu principalmente através dos pecuaristas de Poconé, município conhecido como “entrada” do Pantanal.
Na audiência pública desta quarta, indígenas, assentados da reforma agrária, quilombolas e pescadores ribeirinhos usaram a fala para afirmar que estão sendo ignorados. “Nós precisamos ser ouvidos. Estamos lá muito antes. Os fazendeiros são donos do Pantanal? Nosso sagrado diz que não”, disse Eliane Xunakalo.
Ela e outros representantes da comunidade pantaneira cobraram a realização de uma consulta pública, conforme previsto no Decreto Federal 10.088 de 2019. De acordo com eles, as populações tradicionais estão sendo deixadas de fora da discussão por conta da força econômica dos pecuaristas.
Pano de fundo
Enquanto a pecuária é a atividade econômica utilizada para justificar o Projeto de Lei Nº 561/2022, o texto da proposta deixa implícita a permissão para exploração de garimpo e outras atividades poluidoras ou que causem impacto ao meio ambiente, como a consolidação de uma hidrovia.
“A pecuária extensiva está sendo utilizada como bode expiatório para isso. Hidrovia do Rio Paraguai, se esse projeto for adiante, da forma que o texto do projeto está colocado, passa a ser permitido. Temos que fazer o contrário, proibir hidrovia no Rio Paraguai; proibir PCH e empreendimentos hidrelétricos em toda a bacia do Alto Paraguai, que engloba o planalto”, concluiu Lúdio Cabral.