“Shopping Popular: Uma história de luta e muitas conquistas”. O nome do livro já evidencia a trajetória de sucesso e os desafios enfrentados pelos lojistas do complexo comercial de Cuiabá desde os primórdios.
Escrito pela jornalista Sandra Carvalho, 57 anos, o exemplar faz um mergulho profundo na história desse ícone comercial. A obra foi lançada em março deste ano, cerca de quatro meses antes do incêndio que devastou o local, ocorrido na madrugada da última segunda-feira (15).
Com a estrutura fundada em 21 de abril de 1995, os comerciantes do Shopping Popular passaram por protestos, enchentes e até prisões e tiveram que recomeçar por várias vezes.
No entanto, na última semana, toda a luta se transformou em cinzas, devastando a vida de muitos camelôs e suas famílias. Mas a publicação ficou para imortalizar essa história.
Em entrevista ao Leiagora, a escritora falou sobre o livro, como foi o processo de curadoria para escrever o exemplar e ainda fez um relato a respeito do que sentiu quando recebeu a notícia da tragédia.
Confira abaixo a entrevista na íntegra
Leiagora - Como a ideia do livro surgiu?
Sandra Carvalho - Na verdade, eu fui convidada pela a Associação para escrever esse livro. Mas essa é uma história que começou muito anos antes dessa minha relação com o Shopping Popular. Eu era repórter do jornal Diário de Cuiabá quando, no dia 1º de abril de 1995, a prefeitura retirou os camelôs do Centro e levou para o bairro Dom Aquino a contragosto. Então, teve um enfrentamento, queimaram pneus, e prisões. A polícia fez um aparato enorme para poder retirá-los e eu cobri essa retirada. Antes, eu já havia acompanhado toda a situação dos camelôs com a prefeitura e tudo.
Anos se passaram, conheci o presidente da Associação do Shopping Popular, Misael Galvão. Depois, fui trabalhar na assessoria de imprensa do local. Eu convivi com eles bastante e, um tempo depois, acabei saindo da assessoria de imprensa. Só que ficou essa relação de amizade com os camelôs, nós construímos um vínculo afetivo.
Leiagora - Como foi esse processo de curadoria para escrever a obra?
Sandra Carvalho - No final de 2014, eu fui convidada para escrever o livro e terminei de escrever cinco meses depois. Eu fiquei dentro do arquivo público e tive a ideia de fazer a linha do tempo, com base no que foi publicado e noticiado pela imprensa. Então, todo o livro foi escrito praticamente com base no que a imprensa divulgou. Eu peguei o Jornal do Dia, que não existe mais, e olhei folha por folha, mês por mês, ano por ano daquele período que eu já sabia que era a época do embate com a prefeitura.
Peguei o Diário de Cuiabá e olhei folha por folha, ano por ano. Além desse, também pesquisei na Gazeta, Folha do Estado e fui fotografando. No livro, eu coloco a data e o jornal que publicou a notícia. Ali, tem crédito para os jornalistas que produziram a matéria, do fotógrafo e do veículo de comunicação que publicou. Então, foi um trabalho nosso, jornalístico, que está dentro desse livro.
Eu comecei contando desde quando os libaneses foram chegando até Cuiabá para vender tecidos e tal. Depois, na década de 80, o governo federal fez um chamamento para que pessoas de outros estados viessem ocupar e colonizar Mato Grosso. Veio muita gente do Paraná, do Nordeste e de São Paulo. Teve quem foi para o nortão, teve quem foi para o garimpo, outros que ficaram em Cuiabá e foram para a rua vender. Isso está tudo no livro, eles organizaram vários líderes e esses líderes bateram de frente com os fiscais e a prefeitura. Até que eles foram transferidos para o bairro Dom Aquino.
Eu narro, contatando a partir das reportagens com fotos, a escalada deles no bairro Dom Aquino. Inclusive, eu conto que nasceu em Cuiabá, dentro do Shopping Popular e da Associação, a ideia da criação de uma lei para um imposto menor para essas pessoas. Para eles terem condição de pagar o imposto e legalizar. Porque eles sempre foram vistos como marginais porque tinha a questão do contrabando. Essa luta virou nacional, que é a Lei dos Sacoleiros.
Eles foram crescendo e reformando. Quando chegaram no Dom Aquino, só tinha cimento, dois banheiros e uma salinha. Nesse mesmo dia que eles foram transferidos, eles escolheram a primeira diretoria do Shopping Popular com eleição direta. Existem prints aqui no livro dessas atas. Então, eles foram crescendo, juntando dinheiro e tiveram parceria com a prefeitura e, depois, com o governo do Estado. Assinaram um TAC (termo de ajustamento de conduta) com o Ministério Público para conseguir aquela área, que era da prefeitura. Sempre fazendo muitas ações de solidariedade, enfrentando a polícia, perdendo a mercadoria. Antigamente, tinha enchentes ali, alagava, e eles perdiam tudo. De repente, chovia e a água invadia lá dentro.
Leiagora - Essa linha do tempo que você mostrou no livro tinha muito sofrimento?
Sandra Carvalho - Eles sofreram muito, pelo fato do 'código penal' que eles desenvolveram para sustentar a família ser considerado crime, que é o descaminho e contrabando. Então, eles foram presos, perderam muito e foram humilhados. Sofriam ações da polícia, o helicóptero aparecia lá e era aquele desespero. Na estrada, eles sofriam assaltos, os bandidos trancaram eles naquele lugar onde ficam as malas nos ônibus. Ficaram trancados ali e sem roupa. Foi muito sofrimento. Além das enchentes. Eles tiveram que recomeçar várias vezes. E, agora, ficaram sem nada mesmo. É uma situação muito difícil, são 600 bancas e cerca de 3 mil funcionários desempregados, com famílias inteiras dependendo do Shopping Popular. Então, é muito triste mesmo, mas eu acredito na superação deles. Porque o livro, para além de ser uma experiência profissional, também foi uma experiência pessoal.
Leiagora - Conte como foi a experiência de cobrir o protesto dos camelôs em 1995.
Sandra Carvalho - Eu não lembro quantos anos que tinha, mas eu era bem nova nessa época. Revisitando esses jornais durante a pesquisa do livro, eu vi as minhas matérias, assinadas por mim. Ali já foi um túnel do tempo, eu revendo meu trabalho da rua. Sempre gostei de ficar na rua, sempre fui repórter de Cidades e Polícia. Eu gosto de escrever sobre a cidade, o cotidiano e os personagens que fazem o dia a dia. Essa experiência no dia dos protestos foi algo muito importante na minha vida, ainda não tinha visto nada parecido.
Tinha cerca de mil pessoas no dia, chorando e resistindo. Foi a primeira grande cobertura que eu trabalhei. Tinha polícia, batalhão de choque e seres humanos sofrendo. Foi a minha primeira grande cobertura, marcou muito pra mim. E, ainda depois, fui trabalhar lá, são muitas histórias nos bastidores.
Leiagora - Quando você começou a escrever o livro e quanto tempo levou para publicar?
Sandra Carvalho - Eu escrevi o livro em 2015, mas eles não tinham condições de imprimir a obra e mandar para a editora. Anos se passaram e o Misael me chamou para publicar o livro. Mas eu tive que atualizar o livro, porque, infelizmente, tinha gente que tinha morrido e outros fatos que tinham acontecido. O livro acabou ficando na gaveta de novo e sem dinheiro para imprimir. Quando foi em 2023, eu já estava chateada por causa da demora. Mas acabei atualizando o livro de novo, falei da pandemia, que falecerem pessoas, que ficaram fechados e perderam dinheiro de novo. E encerro o livro contando o novo projeto que já está sendo executado, que é um prédio com oito andares, com sete andares para estacionamento e três cinemas. Então, o auge do livro, que é uma história de superação e inspiração, encerra com essa nova obra. O livro foi lançado em março deste ano, contando toda essa história de sucesso inspiradora, mas tudo isso acabou virando cinza com o incêndio.
Leiagora - Como as pessoas podem adquirir o livro?
Sandra Carvalho - O livro não é vendido. Eles me deram exemplares para eu entregar para os colegas jornalistas. Porque é o trabalho do jornalismo que está dentro do livro, para além da história dos camelôs. Eu não consegui entregar todos os livros ainda e já aconteceu essa tragédia. Tudo é doado, não é vendido. Então, eu vou entregar para os colegas jornalistas. Mas, graças a Deus, nós temos o livro, imortalizou a história.
Leiagora - Como foi receber a notícia da tragédia no Shopping Popular?
Sandra Carvalho - Eu soube da notícia às 4h30, quando entrei na internet e fiquei sem acreditar até agora. Eu só passei lá na frente, mas não quis descer do carro. Fiquei muito emocionada ao ver a cena de longe, imagina lá perto. Eu vi fotos e vídeos na internet, Misael chorando. Pra mim, é surreal essa história aí, pareceu pra mim uma ficção vendo as chamas destruindo tudo. E um livro que acabou de ser lançado com a história e tudo destruído.
Para mim pareceu uma ficção, mas que é uma realidade. Mas, não acredito que seja o fim, mas sim o fim de mais uma história na vida desses camelôs tão sofridos. Tenho certeza de que eles vão conseguir se reerguer. O fogo não vai destruir uma história inspiradora como a deles.
Leiagora - Você pretende escrever outro livro sobre a tragédia e o recomeço dos comerciantes?
Sandra Carvalho - Hoje, não consigo pensar nisso e falar “eu quero escrever”. Estava pensando que se eu fosse confiante, sairia na mesma hora e teria ido lá. No momento agora dessa tragédia, não consigo pensar em escrever outro livro sobre isso. Eu não sei se teria condições emocionais, o tempo passou pra mim. Eu não me considero uma pessoa velha, mas já estou indo para 60 anos. Mas, assim, emocionalmente, eu não sei se hoje gostaria de escrever essa história. Mas eu acho que ela precisa ser escrita. Emocionalmente, eu não sei se eu quero, talvez eu queira ficar com essa daqui que está no livro e deixar para outra pessoa escrever essa etapa. Não consigo pensar sobre essa parte, muito triste ainda. Prefiro esperar mais um pouco para pensar sobre escrever ou não essa parte da tragédia.
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