Na reta final das entrevistas com os candidatos às prefeituras de Cuiabá e Várzea Grande, a convidada da vez é a professora Leliane Borges (PT), de 51 anos, que disputará o comando do Executivo municipal da 'Cidade Industrial' em outubro.
A docente, sindicalista, mulher preta e defensora dos direitos LGBTQIAPN+, afirma que, apesar da aversão a algumas ideias tanto do governador Mauro Mendes (União), como da própria família Campos, pretende dialogar com ambos caso eleita. O objetivo é de angariar recursos para a construção de uma cidade ainda melhor para as novas gerações, apesar das divergências políticas.
A garotinha do interior do estado do Maranhão sempre soube o que queria: ser professora. Para além disso, sempre observou os exemplos dentro de casa, na luta por direitos, como vendo a mãe acampada em frente à prefeitura na busca por acesso à educação dos filhos. Ou com o avô, quando, em um burrinho, lutava para que o sítio, em que estava o quilombo em que moravam, pudesse se tornar uma cooperativa, com energia elétrica.
O tempo passou e, em 1996, a professora se mudou para Mato Grosso, em especial Várzea Grande. Esse sentimento de luta foi aos poucos florescendo no coração de Leliane, que ensina aos alunos não tratarem com medo, uma das disciplinas mais temidas na escola, a matemática, ou melhor ‘boatemática’, como ela prefere se referir.
Inserida em movimentos sindicais, a militante do Partido dos Trabalhadores leva na bagagem, além dos refrescos da sala de aula, alguns momentos difícies como servidora pública ao longo de 30 anos. Ela é caloura nas eleições pelo Executivo, mas, ainda em 2020, disputou um cargo como vereadora, sem sucesso.
Confira a entrevista completa:
Leiagora - O que há por trás da Leliane professora e agora política? O que te levou para esses caminhos?
Leliane Borges - Vim do Nordeste para Mato Grosso. A minha infância foi no Nordeste, eu sou descendente de quilombola, do quilombo do Timbó, e lá a gente estudava em escolas a 10 quilômetros de distância, acordava cedo e ia para outro município, encontrava a nossa professora chamada Vó Dindinha e, da casa dela, íamos para a escola na cidade de Queimada. Era sala múltipla, com crianças de todas as idades.
Lá não tinha série, você terminava o ‘ABC’ e passava para a cartilha. Quando minha irmã mais velha passou para a cartilha, não tinha mais escola no interior para ela. A minha mãe decidiu começar a produzir farinha, para juntar dinheiro e comprar uma casa na cidade.
Nós todos participamos dessa labuta dela, plantava mandioca e esperava todo o processo até a produção da farinha de puba. Quando minha irmã terminou a cartilha, minha mãe já tinha realizado o sonho dela, de comprar uma casa na cidade. Ao chegar à cidade, nossos parentes do interior ficavam muito preocupados: 'como que uma mulher, mãe solo, ia manter as crianças na cidade?'
A preocupação da nossa comunidade quilombola era de que acabássemos na prostituição. Minha mãe defendia a gente e dizia que estávamos lá para estudar. Desde criança, muito pequena, eu vivia um sonho. Queria ser professora.
Hoje, eu me encontro há 35 anos nessa profissão que eu me realizo todos os anos. Eu sou uma professora de ‘boatemática’ feliz. A parte mais difícil de vir para a política, essa política formal, é estar longe dos meus pequenos do ensino médio e fundamental.
Chegou a hora de poder devolver a Várzea Grande tudo que ela me ofereceu. Sou grata a uma professora chamada Eliete, lá de Várzea Grande. Na época, a gente recebia salário de fevereiro, teve vez que cheguei a receber em outubro. Fiquei sem dinheiro para comer, se eu não trabalhasse na escola privada para ajudar a me manter, a gente ficava sem dinheiro. O que muitos pais faziam? Compravam passe, do nosso ônibus para os professores. Quanto à alimentação, eles faziam cesta básica e davam pra gente.
Teve umas semanas que eu estava muito sem dinheiro, a única coisa que tinha era arroz e a comida que eu separava para o meu filho, o Peter, que hoje tem 32 anos. Essa professora maravilhosa falou ‘Leliane, vem almoçar’. Eu recusei. Mas ela insistiu tanto… Ela estava comendo arroz com manga verde e eu experimentei. Na minha casa, tinha duas mangueiras. Desde esse dia eu não passei mais fome, porque tinha arroz e manga. Vou ser grata à professora Eliete a vida toda por isso. Ela me alimentou naquele dia e todos os dias das duas semanas seguintes.
Eu tô na militância desde que eu nasci, porque, lá na roça, eu montava no burro com meu avô e a gente ia falar que as comunidades deviam se organizar em cooperativas. Que um dia, lá no sítio, ia ter luz a todos e, quando meu vô já com Alzheimer, instalaram a luz lá no sítio, ele não entendeu. Mas eu entendi, foi o sonho que ele plantou em mim. Vou continuar sonhando por toda a minha vida.
Minha luta não é de vitória, mas é batalha o tempo todo, batalha por existir e, por isso, eu resisto.
Leiagora - O que já fez pela educação de Várzea Grande e o que acredita que ainda precisa de melhorias?
Leliane Borges - Eu já fiz atos nas ruas, nós já ocupamos o gabinete do prefeito, a câmara de vereadores. Tentamos dialogar com o prefeito atual que não nos recebe. E é bom destacar que eu só cheguei onde cheguei pela educação.
Várzea Grande tem pecado em não valorizar os profissionais. Há funcionários mais de 7 anos sem reajuste de salários. Três vírgula oitenta e por centro foi o que o prefeito repassou do direito deles, ele ainda debochou dizendo ‘você não achou bom, devolve’ e também chegou a usar outras palavras. O salário deles é menos que um salário mínimo, precisa da complementação constitucional para receberem o mínimo.
Hoje, todos os trabalhadores sabem o quanto é difícil ser pai e mãe, a maioria dos profissionais tem que fazer bico para poder complementar os salários. Professores também sofrem, Várzea Grande não paga o piso proporcional e nem o piso nacional. Os professores acabam trabalhando em duas ou três escolas para a garantia de condições melhores de sobrevida.
Para corrigir isso, precisamos de projetos com todos os envolvidos para traçarmos um curso para corrigir a situação.
Leiagora - Há ainda resistência por parte da população quanto à política. O que fazer para mudar isso?
Leliane Borges - É construído na gente que política é ruim. Todo o político é ladrão. Então, quem é o filho honesto de caráter que quer ser político? Mas a política é a arte de evitar a barbárie, antigamente, qual era forma de política? Países subjugando os outros com guerra. Hoje, conquistamos direitos por meio de políticas públicas.
Um exemplo que eu gosto muito de citar é o Samu. Quando eu era menina e alguém se acidentava, as pessoas colocavam em cima de um papelão, uma rede e levavam para o pronto-socorro. Não tinha essa organização que há hoje, nos pronto-socorros, só eram atendidos, na maioria das vezes, os próprios servidores públicos. Nós chorávamos com nossas ervas e pouco acesso à saúde.
Escola pública também não eram para todo mundo. Para eu começar a estudar, quando saí do quilombo, chegamos na cidade e não tinha escola. Minha mãe teve que brigar com Deus e o mundo, dormiu na frente da prefeitura para poder conseguir vagas para os filhos. A escola pública era para a elite. A privada era para aqueles que eram considerados rebeldes da elite.
Por falta desse debate histórico, as pessoas se esquecem que, hoje, só temos acesso a esses espaços por meio de políticas públicas.
Eu me formei em ‘boatemática’ pela UFMT. Mas tinha muita dificuldade por parte das pessoas periféricas conseguirem estudar. Quando eu terminei o ensino médio, não fui direto para a faculdade, porque havia maior dificuldade ao acesso. Quando chegava lá, a gente percebia uma diferença muito grande, porque ainda era a elite que dominava o espaço.
Leiagora - Em relação aos seus adversários na disputa, como você, Leliane, é a melhor opção ao eleitor várzea-grandense?
Leliane Broges - Venho para representar a minha cidade. Fui acolhida pelo estado de Mato Grosso em 1995 e adotada por Várzea Grande. Por que eu estou mais preparada? Porque passei por uma formação desde a minha juventude, primeiro, uma formação na igreja, venho da igreja católica, que era agregadora em ajudar as pessoas. Em Mato Grosso, comecei a me dedicar às demandas sindicais e, para ser um representante sindical, nós passamos por uma formação.
Eu já estive em diversos conselhos, estou ocupando a suplência do Conselho de Trabalho de Mato Grosso, já fui conselheira titular do Conselho dos Direitos Humanos, sou formada pelo Fórum dos Direitos Humanos e da Terra, Conselho da Diversidade Racial em Várzea Grande, estive no Conselho Estadual da Alimentação Escolar por vários anos, trabalhando a segurança alimentar, também faço parte do Conselho de Segurança Alimentar de Várzea Grande e também estou no Conselho da Mulher do Estado de Mato Grosso. Sou do coletivo LGBTQIAPN+ do país.
Leiagora - O que tem em mente em relação às políticas públicas para as minorias?
Leliane Borges - As pessoas me perguntam, 'Leliane, você é lésbica?' E eu respondo ‘O que você acha?’. Se você achar que sim, tudo bem, para mim não desabona em nada. É uma bandeira que eu tenho desde a década de 80, porque precisou uma aluna minha falecer para eu entender que as pessoas têm direito de ser quem elas são. Ela se matou, ela pedia ajuda, mas nós não tínhamos condições de ajudar. Nós não tínhamos formação, não sabíamos o que fazer. De todas as minhas bandeiras, a minha prioritária é essa. Hoje, as pessoas ainda discutem o íntimo dos outros, tínhamos que estar discutindo o aquecimento global, que, se não conseguimos reverter, vamos morrer todos, homem, mulher, LGBT.
Hoje, se faz necessário repensarmos Várzea Grande. Eu só consigo mudar o lugar onde estou. Precisamos pensar em desenvolvimento sustentável. Junto disso, combater a mortalidade infantil. Também vivemos anos em que melhoramos nossa expectativa de vida, mas, a longo prazo, precisamos pensar em alternativas para cuidar desse processo de envelhecimento das pessoas.
Quero instituir o gabinete do diálogo para que a população possa passar por lá e converse com a prefeita, jovens, adultos, crianças, idosos têm ideias. Falta alguém que escute. Se a cidade é deles, por que só deve prevalecer a minha opinião? Vamos construir essa nova forma de governar.
Para nós mulheres, temos ainda muito o que fazer contra o feminicídio, os nossos ditos ‘amores’ estão nos matando. Temos também que discutir a morte e sem dados das mulheres trans. Porque, ao chegar em um legista para fazer exame, ele nem considera ela como mulher, sai fora dos dados. Então, isso é muito errado. Para reverter isso, a gente só consegue ocupando os espaços. Se a juventude entender o processo, ela se movimenta. Jovem não é só o futuro, é o presente.
Leiagora - Quais suas perspectivas econômicas de Várzea Grande?
Leliane Borges - Várzea Grande vem enfrentando um processo de morte econômica, é o segundo maior município do Estado que era segunda maior arrecadação. Hoje, ainda é maior em quantidade da população, mas a quarta arrecadação. Em 2016, Várzea Grande é a terceira, aí você vê o lapso de queda, em 8 anos ela passou a quarta posição. Em 2030, em que posição Várzea Grande vai estar?
Está saindo fora do trilho, precisamos de proporcionalidade. Várzea Grande é um ‘farol’ para os municípios do Vale do Rio Cuiabá. Então, é necessário que a cidade trabalhe melhor com esses demais municípios. Minha intenção não é só a projeção de uma melhora na qualidade de vida do cidadão, como também, os municípios em torno, e é possível com uma boa gestão.
Leiagora - Um problema crônico em Várzea Grande é a situação da água. Quais são as suas ideias para solucionar a questão?
Leliane Borges - A questão da água não irá se resolver de forma rápida. Precisamos de um projeto de curto prazo, um de médio e um de longo. O de curto é captar a água do rio Cuiabá e distribuir para quem precisa, há uma má distribuição de água em Várzea Grande. Mas sem um projeto a longo prazo, nós vamos exaurir o rio Cuiabá. Eu preciso cuidar de toda a cidade. Nós temos porções de terrenos vazios, o que podemos fazer? Plantar. Precisamos nos unir com os vereadores para criarmos um projeto em que possamos plantar árvores de pequeno porte nesses terrenos para que, quando elas crescerem, elas sequestram carbono.
Quando a raiz firma no solo, ela facilita a irrigação do solo, que irá alimentar os lençóis freáticos. Precisamos hidratar a terra para atrair mais água. E quando o dono do terreno precisar desse espaço, nós iremos devolver sem onerar o proprietário.
Leiagora - Como líder sindical, a senhora já teve alguns embates com o governo do Estado. Como será sua relação com o governador Mauro Mendes, caso seja eleita?
Leliane Borges - Eu vou dialogar, quando eu estou representando Várzea Grande, eu não estou me representando. Mauro Mendes veio a Mato Grosso igual a mim. Ele é filho adotivo de Mato Grosso, ele não vai negar fazer o que tiver que fazer para dar recursos, e eu vou buscar. Vou buscar também recurso no governo federal, junto ao presidente Lula. Se for necessário, o próprio presidente Lula vir conversar com o governador, porque ele não nega recurso para Mato Grosso. Vir conversar e intervir para destinar recurso a Várzea Grande, ele virá.
Eu fiquei muito grata quando o presidente me deixou ficar perto dele, me possibilitou tirar uma foto com ele, me convidou diretamente, eu estive com o Lula quando ele veio a Várzea Grande. O Lula, além de presidente, é meu parceiro, ele sabe da importância de cada município do país. O Lula não deixou de mandar recurso para Mato Grosso por não ser do mesmo partido do governador. Nossas diferenças não são pessoais, são diferenças de ideias, e eu vou buscar recursos junto ao Mauro Mendes e o governo federal.
Leiagora - Como a senhora avalia o contexto da família Campos em Várzea Grande?
Leliane Borges - Eles tiveram a sua importância no seu tempo. Qual era o modelo de política deste país se não era esse de subjugar? Quanto mais eu sufoco, mais me projeto. Esse modelo de política já passou.
Eles deram suas contribuições, em sua época, se você precisar no Brasil lá na minha cidade no Maranhão, qual era o modelo? Esse mesmo. Precisou que o Flávio Dino assumisse o governo para entendermos o que era democracia. Nós quilombolas não tínhamos voz, ou vez, era só com luta.
O que Jayme e Júlio reproduzem? A política que eles aprenderam chega uma hora que a professora precisa alfabetizar politicamente até mesmo os adultos. Se Jayme e Julio estão como senador e deputado, eu vou precisar de ambos para administrar Várzea Grande. Eu preciso de recursos que os deputados demandem em Várzea Grande. Se tiver que conversar como Coronel Assis, eu vou conversar, ele é o deputado federal de Várzea Grande, ele pode trazer recurso para Várzea Grande. Então, não tem essa questão de ego, tem a questão de defesa de construir uma nova política. Quero dar a mão para Jayme Campos, coronel Assis, Mauro Mendes, porque vou dar à mão para todos os munícipes de Várzea Grande.