O monitoramento do Pix, tema em voga e cercado de controvérsias, gerou uma crise ao governo federal na última semana, que decidiu recuar das atualizações nas normas sobre o fornecimento de informações pelas instituições financeiras à Receita Federal.
A proposta de monitorar transações financeiras de até R$ 5 mil pela Receita Federal gerou pânico entre os brasileiros, que temeram pela privacidade e chegaram a interromper o uso do Pix como forma de protesto. Além disso, alguns estabelecimentos, de maneira ilegal, começaram a cobrar taxas sobre pagamentos feitos via Pix.
No entanto, o tema está cercado de fake news, já que as novas regras nunca mencionaram a cobrança de taxas sobre o Pix ou a vigilância sobre as ações de cada um dos 211 milhões de brasileiros.
De acordo com o governo federal, o monitoramento já existe e o limite foi ampliado, passando de R$ 2 mil para R$ 5 mil em transações mensais feitas por meio do Pix. Bancos tradicionais e diversas outras instituições financeiras já repassam informações sobre movimentações à Receita Federal desde 2003. As transações financeiras, independentemente da modalidade, incluindo o Pix, são informadas ao órgão. Desde 2020, quando o serviço do Banco Central foi disponibilizado ao público, o Pix passou a ser incluído no total mensal de movimentações a crédito ou débito reportadas à Receita Federal. A nova norma, portanto, apenas ampliava essa obrigatoriedade para outras instituições financeiras, como fintechs, carteiras digitais e soluções de pagamento e transferência, incluindo moedas eletrônicas.
Após as polêmicas em torno da medida, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), anunciou, na quarta-feira (15), a revogação do ato normativo da Receita Federal sobre o monitoramento das movimentações via Pix.
Em entrevista ao Leiagora, a professora e diretora da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a contadora tributarista Giseli Silvente, desmistificou que a medida do governo apenas expandia um monitoramento já existente, sem trazer novidades. Ela também destacou que a Receita Federal não dispõe de pessoal suficiente para controlar as transações de cada brasileiro individualmente.
Leiagora - A Receita Federal anunciou a revogação das novas regras de monitoramento das movimentações financeiras, especialmente no que diz respeito ao Pix, após a disseminação de fake news que alegavam que essas medidas implicariam em taxação das transações. Como a senhora avalia a decisão do governo de recuar frente a esse contexto?
Giseli - Claramente foi uma decisão política. Por que eu entendo dessa forma? Porque os controles que a Receita Federal faz em relação à movimentação dos contribuintes, quer sejam pessoas físicas ou pessoas jurídicas, já existem há muito tempo, através de outras declarações, como a Decred [declarar operações com cartões de crédito], que é a declaração entregue pelas administradoras de cartões de crédito desde 2003. Temos a DIMP, que é a Declaração das Informações do Meio de Pagamento, entregue já desde o ano passado, que entrega para a Receita Federal a movimentação dos cartões de débito, crédito e Pix e a E-Financeira, que, na verdade, desde 2015 existe, só que na criação da E-Financeira, que era entregue exclusivamente pelas instituições financeiras e entidades de previdência privada, só na época da sua criação, por discricionariedade, a Receita Federal selecionou apenas algumas movimentações bancárias, não todas. Então, veja que não tem novidade.
Criou-se um misticismo de tributação, que todo mundo vai ser pego pela Receita Federal. Isso não existe. Porque esses controles já existiam, só está centralizando e unificando em apenas uma declaração, que é a E-Financeira, tendo em vista que inclusive a Decred não seria mais entregue este ano.
Leiagora - As regras entraram em vigor em 1º de janeiro. Quais eram as principais mudanças no processo de fiscalização das transações financeiras?
Giseli - Ampliar a gama de pessoas jurídicas que estavam obrigadas a entregar a E-Financeira, que até então era apenas instituições financeiras e entidades de previdência privada, ampliou-se para as outras entidades, que hoje prestam serviços financeiros tecnológicos, as outras formas de pagamento só essa ampliação em termos de contribuinte obrigado a entregar a E-Financeira.
A segunda alteração foram os limites, que antigamente os limites eram para pessoa física até 2024 na E-Financeira era informada movimentação de até R$ 2 mil, passou de R$ 5 mil. Então, veja que não foi prejudicial, pelo contrário, aumentou o limite. A PJ, a pessoa jurídica, que o limite de informação da E-Financeira era R$ 6 mil, passou a R$ 15 mil. Então, não teve prejuízo nenhum e essas foram as únicas alterações. Ampliar as PJs obrigadas a entregar semestralmente a E-Financeira e alterar os limites de entrega.
E um ponto muito importante que precisa ser evidenciado é que quando essas instituições entregam a E-Financeira elas não detalham. “Olha, Gisele Silvente pagou R$ 3 mil para João, R$ 4 mil para José e R$ 2 mil para Maria. Não! Ela vai informar: ‘Olha, Gisele, no período desse semestre, movimentou R$ 30 mil de movimentação entre cartão de crédito, cartão de débito, Pix’". Então não há nem a identificação de quem é o beneficiário, a data. É uma movimentação global.
A partir desta movimentação global, a Receita Federal vai fazer os cruzamentos dela. Que cruzamento? Por exemplo, um cruzamento que já existe hoje: Gisele, professora da Universidade Federal. A UFMT informa que a UFMT pagou para Gisele mil reais no ano de 2024. Aí a E-Financeira informa para a Receita Federal, olha, “Gisele recebeu aqui três mil reais de receita em 2024”. Opa, a Receita Federal fala: “como assim?” A única fonte de renda informada por Gisele em sua declaração de imposto de renda foi a UFMT, em que ganhou mil reais. E como que ela ganhou três mil aqui na conta? De onde vieram os dois mil? É isso que a Receita vai fazer.
É muito importante evidenciar que o foco da Receita jamais são as pessoas físicas, a população em geral. Até mesmo porque a população em geral não tem movimentação expressiva. Ela está atrás de grandes contribuintes, grandes movimentações, porque ela não tem nem pessoal para fazer essa avaliação [de toda a população].
Leiagora - Embora o monitoramento de transações financeiras por instituições como bancos e plataformas de pagamento já exista, as novas regras ampliariam essa fiscalização. Qual seria a importância dessa ampliação para o controle da economia e, principalmente, para o combate à sonegação fiscal e a fraudes financeiras?
Giseli - O grande objetivo dos órgãos fiscalizadores e arrecadadores, como principalmente a Receita Federal, é inibir, impedir, jamais para o ser humano extremamente inteligente, mas inibir a sonegação fiscal. Então, o regulamento do imposto de renda, que é o decreto 9.580/2018, ele disciplina as omissões de receita, ou seja, movimentação financeira em desacordo com a emissão de documento fiscal. Então, todo o comércio, toda a indústria, para vender, ela tem que emitir uma nota. Não existe nenhuma operação fiscal que esteja desobrigada a emissão de nota. Um prestador de serviço, quando ele presta um serviço, ele precisa emitir uma nota de prestação de serviço. Se ele é PJ, ele vai obter essa nota na prefeitura. Se ele é PF, ele também vai emitir, enquanto autônomo, essa nota na prefeitura e vai pagar o imposto.
Então, o objetivo do governo é inibir a sonegação fiscal. E, consequentemente, é aumentar a arrecadação. Isso é desde os primórdios da civilização. É o papel do governo. Inibir a omissão de receita e, consequentemente, a deixarem de recolher os tributos devidos.
Leiagora - Apesar de a Receita Federal ter garantido que não haveria alterações no sigilo bancário, muitos cidadãos expressaram receio de que as novas medidas violassem sua privacidade. Como você acredita que o governo pode equilibrar a necessidade de fiscalizar as movimentações financeiras e, ao mesmo tempo, proteger os direitos de sigilo bancário dos cidadãos?
Giseli - É como eu disse, a E-Financeira já existia desde 2015 e já eram entregues esses dados para a Receita Federal, e nunca houve quebra de sigilo bancário ou sigilo fiscal de qualquer pessoa, seja física ou jurídica. O que seria entregue para a Receita Federal seria um totalizador de um movimento de um período. Não seriam identificados data específica, modalidade de pagamento. Como assim modalidade? Não é cartão de débito, não é cartão de crédito, não é Pix, não é TED, não é DOC. Não ia ter esse detalhamento, nenhum motivo da transação. Ia ter um total. Um total dizendo, você ganhou 10 e na sua conta entrou 30. Explica para mim de onde vieram 20. Contribuinte que tivesse uma explicação plausível, ok, quem não deve, não teme. Agora, obviamente, aquelas pessoas que vivem à margem da legislação é lógico que iam temer essa movimentação.
Então, não tem, em nenhum momento, teria quebra de sigilo bancário ou fiscal de qualquer pessoa que seja física ou jurídica. Até mesmo como eu disse, isso já existia, não houve alteração, só ampliou, acrescentando que já existia o que já existia porque acabou-se o DOC. Hoje, só tem o TED, então ampliou. Eu vou somar todas as entradas da sua conta. Foi só isso.
Leiagora - O governo editou uma Medida Provisória (MP) para reforçar a gratuidade do Pix e garantir o sigilo bancário. Como você avalia essa possibilidade? Essa MP poderia ser uma solução definitiva para tranquilizar a população?
Giseli - Ele quis deixar claro nessa medida que foi a grande fake news que iria haver taxação, iria haver cobrança de tributo sobre a movimentação do Pix, e em nenhum momento isso aconteceu. Isso surgiu obviamente de pessoas mal intencionadas que não queriam esse controle das suas contas, porque a legislação sempre foi muito específica e já existia, porque agora esse estardalhaço todo? Só por que acrescentou o PIX, que passou uma movimentação maior? Então a Medida Provisória apenas declara que não haverá taxação, que não haverá tributação, não haverá quebra de sigilo. É apenas uma informação de monitoramento. Como já existem outras formas de monitoramento hoje.
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As pessoas estão fazendo um cavalo-de-batalha por algo que não existe. É muita informação mentirosa sobre o Pix. Por isso eu disse na primeira pergunta que você me fez: isso é diretamente político.
Leiagora - Para finalizar, mudando de assunto, o pacote de corte de gastos do governo inclui a isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas com rendimentos de até R$ 5 mil. No entanto, a medida não foi bem recebida pelo mercado. Poderia explicar os motivos dessa reação negativa?
Giseli - Porque o governo não faz nada de graça para ninguém. Quando ele aumenta a base de isenção do imposto de renda é renúncia de receita. Para qualquer governo municipal, estadual, federal renunciar a receita, ele tem que dizer de onde essa receita vai ser substituída. Ele não pode simplesmente abrir mão da receita. E quando ele fez isso, ele disse: “olha, eu vou aumentar a base de isenção, só que eu vou encaminhar um projeto de lei para tributar rendimento de pessoas que recebem R$ 600 mil por ano, ou seja, R$ 50 mil por mês”. Então, o descontentamento foi esse. Ele deixou de tributar uma, vai tributar outras.
Por que? Porque quando o governo faz um programa social, ele tira de algum lugar, ele aumenta uma alíquota do INSS para a empresa, ou ele aumenta uma taxa. Então, ele sempre vai buscar esse equilíbrio, porque ele não pode simplesmente, quer dizer, poderia, poderia se cortasse gasto, mas o governo não tem essa prática, nós sabemos. Então, ele mantém os gastos dele e como vai diminuir uma receita de um lado, ele tem que aumentar de outro para continuar com aquela despesa e não mexer na caixinha dele.