A falta de transparência sobre as motivações que orientaram o corte do censo demográfico, que será aplicado no ano que vem, está por trás do clima desconfortável instaurado no corpo técnico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A opinião é de dois acadêmicos proeminentes que atuaram em comissões internas do órgão, mas que discordam em nível técnico sobre como o censo deveria ser planejado e executado: Ricardo Paes de Barros, professor da cátedra Ayrton Senna do Insper, e José Marcos da Cunha, professor de demografia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O questionário básico, aplicado em 90% dos domicílios brasileiros, foi reduzido de 34 questões para 26 –o questionário completo, aplicado nos 10% restantes, foi cortado de 112 para 76 perguntas. A presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, defende que o enxugamento foi pensado para aumentar as taxas de resposta do censo, e nega que tenha havido motivação econômica. Dois meses após ser empossada, no entanto, ela determinou corte de 25% no orçamento do censo.
Os cortes, somados às demissões de dois diretores, provocaram reações dentro do órgão. Cinco gestores do instituto pediram exoneração conjunta em junho, alegando que a decisão foi arbitrária e deixou de levar em conta apontamentos técnicos internos. Apoiados por cinco ex-presidentes do órgão, eles lançaram a campanha Todos Pelo Censo 2020.
Para o economista Ricardo Paes de Barros, indicado por Guerra para liderar o conselho consultivo que definiu os cortes no questionário, o processo decisório por trás da mudança foi legal, mas inadequado e deveria ter sido aberta uma consulta pública. A declaração foi dada em debate no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), realizado em conjunto com a Folha na segunda-feira (5), com mediação da jornalista Ana Estela de Sousa Pinto.
"Nosso grande problema é de governança. As regras que temos para decidir algo tão importante não são adequadas", afirmou Paes de Barros, se referindo ao questionário do censo. "Nas discussões do conselho, o problema de orçamento nunca foi colocado. Todo mundo queria garantir uma alta taxa de resposta."
Em 2010, ano do último censo, muitos recenseadores tiveram dificuldades de acesso aos domicílios nas grandes cidades, especialmente em condomínios fechados.
Para o economista, o fato de uma pergunta ter sido incluída historicamente não deveria garantir sua continuidade. "Cada pergunta merece uma justificativa de por que será útil na próxima década", disse. Para ele, o censo deve complementar outras bases de dados nacionais. "Não temos que lutar por recursos para o censo, mas para o sistema nacional de estatísticas. Isso é o que importa."
O demógrafo José Marcos da Cunha, da Unicamp, afirmou no debate que os processos decisórios por trás das mudanças no censo foram atropelados, o que é preocupante, uma vez que a oposição às medidas veio do próprio corpo técnico do IBGE. "Temos que perguntar a eles [técnicos] o que está acontecendo. O clima está ruim."
Cunha acredita que os cortes acarretarão deficiências qualitativas, e citou como exemplo a pergunta sobre o acesso à luz, que foi tirada da próxima edição do questionário porque há energia, atualmente, em mais de 95% dos lares brasileiros. O importante na questão, para o demógrafo, seria investigar as diferenças na qualidade, quantidade e nível de formalidade no acesso a esse tipo de serviço.
Apesar disso, ele afirmou que o censo atual não está condenado a ser ruim. "Ninguém está dizendo que o censo vai ficar imprestável. Perdeu muita informação, mas vai ser totalmente utilizável", disse Cunha. "O que está em jogo é o futuro do próprio IBGE, da sua autonomia. Preservar o IBGE é muito mais importante."
Ele terminou frisando que é desnecessário polarizar o debate em torno do próximo recenseamento. "Todos estamos buscando a mesma coisa."
Direto de São Paulo , Laura Castnho / Folhapress