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16/02/2020 às 08:25

“Eu amo a mulher que eu me tornei; lutei para ser ela”, afirma trans moradora de Sinop

A modelo Luiza Spezia Bauermann, conta como foi seu processo de mudança e sua luta contra o preconceito

Edyeverson Hilario

“Eu amo a mulher que eu me tornei; lutei para ser ela”, afirma trans moradora de Sinop

Foto: Arquivo pessoal

Após períodos de descobertas, mudanças internas, aceitações, perdas, lutas, solitude e aprendizagem. Luiza Spezia Bauermann, de 23 anos, decidiu dar outro passo para oficializar, em documento legal, a mulher “que sempre quis ser”. No dia 20 de janeiro conquistou a retificação de seu nome, alteração que para ela “significa dignidade pessoal e direito democrático”.

Para chegar a esse ponto da história, Luiza enfrentou muitas dificuldades. Adversidades que ela confiou em entrevista ao Leiagora. Mas antes de tudo, vamos voltar ao início de sua vida para descobrir como foram os processos que resultaram na oficialização da mudança de identidade.

“Me sentia uma criança diferente”

O sentimento de não ser homem a todo o momento existiu dentro de Luiza. “Sempre fui muito apaixonada pelo universo feminino”, conta. Os cuidados e aparência da sua pele e cabelo eram diferentes dos demais meninos. “Eu busquei bastante isso também”.

Percepção que se evidenciou ainda na infância, quando ela deu seus primeiros passos na vida escolar, período em que ainda morava com os pais em Marcelândia, município localizado a 537 km de Cuiabá. “Sempre queria estar do lado das meninas. Nas atividades eu constantemente ia para o lado feminino, mas não tinha conhecimento, achava normal”.

Com o passar do tempo e na medida em que foi tendo “consciência de ser”, constatou que não era comum. “Gostava de coisas diferentes dos outros meninos. Não era tão rústico, com jeito de menino”. Contudo, não sabia de outras possibilidades. Antes, “ficava tentando me encontrar, porém não queria me aceitar porque a gente acha errado. A sociedade fala que ser gay e trans é errado”. Para não dar essa “decepção à família, sempre disse ‘está tudo bem’, mas nunca estava. Eu não era feliz. Não era a pessoa que eu queria ser”.



Descobertas, aceitações e mudanças

Por morar em uma cidade pequena e ser “muito leiga”, Luiza disse que não conseguiu viver algo diferente até ir morar em Sinop (distante 480 km da capital). Com a mudança, passou a conhecer o universo LGBTQI+, fez amigos e se identificou. “Até então, na minha cidade, eu não tinha nem me assumido gay para minha mãe”, relatou.

Com 19 anos de idade e morando sozinha, Luiza não conquistou apenas a sua independência, mas deu passos largos em direção a sua identidade, o que “queria ser”. Para isso, precisou passar por dois processos de descobertas, aceitações e mudanças. No primeiro momento Luzia relata: “me descobri gay, me aceitei gay e me assumi gay. Então trabalhei isso na minha cabeça para depois vir a outra parte”.

Depois de ter passado por esse processo “me descobri trans”. Por isso, passou por novas mudanças e ressignificações. Este “segundo passo” foi um pouco mais complicado. Muitos amigos a abandonaram por achar “que era uma loucura”. A família ficou com receios, mas após conversar com eles e explicar sobre o que seria a transição e como aconteceria, ficou tudo tranquilo. “As coisas foram acontecendo”, recorda.

O desejo de ser mulher era crescente dentro de Luiza, que quando criança aproveitava os momentos em que a sua irmã e a mãe saia de casa para trajar suas roupas. “Ficava olhando e vendo como que [elas] estavam no meu corpo. As roupas femininas sempre vestiam melhor em mim do que as masculinas”.



Difícil saber que uma sociedade inteira está contra você

Para se tornar a mulher que queria, Luiza diz que precisou enfrentar afirmações de que a sua decisão era uma loucura e abrir mão de muitas coisas e amizades de pessoas preconceituosas. “Afirmavam que isso não existia”, recorda. A transição ainda é um termo muito novo. Há três anos, quando ela transicionou o assunto ainda era um tabu. “Nem era comentado. Hoje em dia está supertranquilo”, observa.

A “mente aberta” e a facilidade “em lidar com as situações” contribuíram para o processo de transição. Contudo, ela adverte que “cada situação de transição é diferente, não tem como generalizar”, mas observa que ainda existe muito preconceito.

O que antes, por algum momento gerou um certo desconforto, hoje “não tem como ninguém discutir, debater ou falar. Todo mundo me vê como mulher”. Mesmo tendo enfrentado lutas, Luiza afirma que é uma experiência única. “Nasceria trans em todas as outras vidas”, afirma.

Hoje ela usa as redes sociais para ajudar outras pessoas que estão passando por processos parecidos com os quais ela viveu. “Na época da minha transição não tive ninguém para me espelhar. Procurei em sites, YouTube, mas são coisas de lugares como São Paulo, Rio de Janeiro, longe”.

“Pretendo ser um espelho para outras pessoas não sofrerem, não passarem por coisas que não acho necessário passar”, afirma.





“Hoje definitivamente sou quem sempre quis ser”

O processo de transição da Luiza ocorreu há três anos, contudo ela ainda não havia oficializado a mudança na documentação. Retificação que foi conquistada apenas no dia 20 de janeiro deste ano. Apesar da mudança na documentação ter ocorrido só agora, ela afirma que a sua identidade não era definida pelo documento. No entanto, representa uma luta diária concretizada, que deu a ela o direito de existir e resistir na sociedade. “Papel que significa dignidade pessoal e direito democrático”. Isto porque, “é desconfortável para um ser humano transexual a não identificação com o nome que lhe foi dado”.

Contudo a conquista do documento não foi tão fácil. Por diversas vezes ela começou, mas não conseguiu terminar o processo. A dificuldade de juntar os documentos pedidos pelo cartório e a falta de informação de como consegui-los, fizeram a modelo postergar a mudança do seu nome. Pois, a burocracia somada com a rotina de trabalho não permitia que ela desse continuidade no processo.

“Precisava entregar os documentos mais atualizados possíveis e eu não conseguia reunir todos eles em tempo. Sempre faltava alguma coisa e eu não conseguia ficar sem trabalhar para correr atrás”, justifica. O caso da Luiza foi ainda mais complicado. Ela nasceu no Paraguai, por isso, precisou ser nacionalizada antes de ter a identidade retificada.

Para isso, contou com a ajuda da paralegal Rafaela Rosa Crispim, que atua junto à Defensoria Pública de Várzea Grande e milita pelos Direitos Humanos da população LGBTI+. Apesar de não ser necessário a interlocução de terceiros, Luiza só conseguiu entregar todos os documentos em tempo hábil após receber orientações da profissional. Depois de três semanas, a sua nova certidão de nascimento ficou pronta.

A alteração do gênero e nome começou em meados de 2009, mas só em 2018 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) oficializou o direito dos transexuais terem a retificação da certidão de nascimento em relação ao nome e ao sexo. Vale ressaltar que não existe a necessidade da realização de cirurgia de adequação sexual, também chamada de redesignação sexual. No caso dos menores de 18 anos, a mudança só é possível via ação judicial.

O pedido de retificação

O pedido de retificação pode ser feito diretamente em qualquer cartório de registro civil brasileiro. Não é necessária a presença de advogados ou defensores públicos. O cartório que fizer a alteração deverá enviar, via sistema eletrônico, o procedimento ao cartório de registro do nascimento da pessoa. Sendo assim, o interessado terá que levar os seguintes documentos: certidão de nascimento atualizada; certidão de casamento atualizada (se for o caso); cópia do RG; cópia da Identificação Civil Nacional (se for o caso); cópia do passaporte brasileiro (se for o caso); cópia do CPF; cópia do título de eleitor; cópia de carteira de identidade social (se for o caso); e comprovante de endereço.

Também serão necessárias as certidões referentes aos locais de residência dos últimos cinco anos: certidão do distribuidor cível (estadual/federal); certidão do distribuidor criminal (estadual/federal); certidão de execução criminal (estadual/federal); certidão dos tabelionatos de protestos; certidão da Justiça Eleitoral; certidão da Justiça do Trabalho; certidão da Justiça Militar (se for o caso).

 
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