Cuiabá, quinta-feira, 28/03/2024
15:46:49
informe o texto

Notícias / Geral

14/06/2020 às 17:31

Em MT, mulheres negras plantam primaveras há gerações e lutam contra a 'política de morte'

No momento em que o movimento negro pauta o mundo, elas afirmam: “precisamos não só que as pessoas não sejam racistas, precisamos de uma política antirracista”

Maria Clara Cabral

Em MT, mulheres negras plantam primaveras há gerações e lutam contra a 'política de morte'

Zizele Ferreira

Foto: Luzo Reis

No Brasil, mães veem seus filhos morrerem diariamente, muitas vezes nas mãos do Estado, sem justiça. Todas elas negras. A situação evidencia o racismo estrutural na sociedade, que assiste a uma crescente aparição de movimentos e símbolos supremacistas pelo mundo, inclusive dentro de espaços institucionais.

Como reação, muitas ocupam espaços de construção de políticas públicas, organizando suas comunidades ou representando-as no parlamento dos principais centros urbanos. Em Mato Grosso, diferentes gerações de mulheres negras, que trilharam o caminho da cultura e educação, protagonizam movimentos sociais no estado com ações contínuas de apoio à população negra, alinhadas aos movimentos brasileiros.

“Nós, mulheres negras, sempre defendemos a nossa população, essa é uma realidade do Brasil. Quando os filhos de uma comunidade suburbana são violentados, não têm saúde ou educação, as mulheres negras se colocam a todo momento”, destaca a ativista e pesquisadora Zizele Ferreira dos Santos. 

Em tempos de pandemia e primavera negra no mundo, elas seguem em alerta, denunciando a “política de morte” como uma das maiores ameaças ao povo negro brasileiro.

“Se você perguntar quem é racista, ninguém vai dizer que é. Racismo é crime, é feio. Mas quando você liga a televisão, você vê a necropolítica sendo colocada em prática. O pequeno João Pedro levou 70 tiros e ninguém fez nada. Miguel morreu porque a patroa mandou a mãe passear com o cachorro e meteu o menino dentro de um elevador. Quem era esse menino? Negro, a mãe negra”, destaca Antonieta Luisa Costa, conhecida como Nieta, presidente do Instituto das Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune-MT).

Antonieta Luísa Costa, conhecida como Nieta, é presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso e militante desde os anos 1980.

O movimento vem ainda denunciando um “mito da democracia racial” que impede o avanço do combate à violência contra negros e negras. “Nós vivemos em um país racista e omisso. O primeiro passo para mudar isso é admitir. Quando um presidente da república senta em uma live tomando um copo de leite, ele está dizendo o que para gente?”, questiona.

No estado, a carência de políticas públicas é agravante da insegurança das mulheres negras, que além de serem vítimas do feminicídio, temem diariamente pela morte de marido e filhos.  

“Não vamos nem fazer recorte, vamos só falar de mulher. Que política a gente tem? O governo acabou com a superintendência da mulher e, de tanto a gente falar, vai criar núcleo. E só vai fazer isso porque Mato Grosso matou 400% de mulheres a mais no ano passado. E quem são essas mulheres? Não temos política de monitoramento e sabemos que a maioria dos feminicídios recai nas mulheres negras”, destaca Nieta.

Atuação

Zizele Ferreira, que atualmente é vice-presidente do conselho de ações afirmativas da UFMT, iniciou sua trajetória ativista em São Paulo por meio da arte. “Foi onde encontrei um espaço de fala, construção e protagonismo. No teatro amador eu me envolvia com questões políticas, mas a questão racial ainda não era central”, conta.

A militância no movimento negro começou efetivamente há 10 anos, como resultado do envolvimento em formação e gestão pública. Em Cuiabá, Zizele, que hoje é doutoranda, ingressou no Coletivo Negro Universitário da UFMT, assumindo a coordenação que hoje é responsabilidade da Lupita Amorim, 21.

Lupita (foto ao lado) faz parte de uma geração que se insere no espaço acadêmico com a democratização do acesso ao ensino superior. Resultado da atuação de ativistas da educação como Zizele e a professora Cândida Soares da Costa. “Anteriormente eu não tive contato com o movimento negro no ensino médio e fundamental”, conta a jovem.

Várzea-grandense, Lupita é atriz e estudante de ciências sociais da UFMT e começou no movimento negro em 2017, em reuniões do coletivo e ações do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (NEPRE), à época coordenado por Cândida. Pelo grupo, Lupita coordena a ação ‘Ciclo de Cinema em Cena: Relações Raciais e Desigualdades Sociais’.

“E essa é minha forma de contribuir na luta. Pela universidade, colocando o meu lugar de fala enquanto uma mulher transexual negra e periférica. Representando e trabalhando sempre para orgulhar a minha família, minha mãe e minha vó, que trabalham muito para que eu me dedique aos estudos”, afirma.

Antes delas, Antonieta já travava a luta racial no estado desde a década de 1980. Formada em pedagogia e geografia, ela ingressou na militância ainda jovem, aos 13 anos, seguindo os passos do pai. O reconhecimento de negritude, no entanto, veio na infância e da forma mais dolorosa.

“Eu soube que era negra aos sete anos de idade. Um dia eu e meu irmão fomos comprar pão e a dona da mercearia falou que não vendia para negros. Quando chegamos em casa, meu pai pegou na mãozinha minha e do meu irmão e voltou lá e fez a dona vender para gente. Eu só chorava. Até então, eu era criança e a sociedade me mostrou que eu era uma criança negra”, relata.

Histórico do movimento negro em Mato Grosso

Nieta, Zizele e Lupita Amorim representam três gerações que plantam e colhem frutos de um histórico de luta da população negra no Brasil e em Mato Grosso.
O marco do movimento no estado data 1983 nos registros da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em Cuiabá, onde o pai de Nieta atuava como presidente do conselho paroquial. A primeira reunião do agrupamentom mais tarde se tornaria o Grucon, grupo Consciência Negra.

Nieta foi inserida em espaços de expressão política também estudando teatro com expoentes como Ivan Belém e Liu Arruda, ainda adolescente. Na época, ela foi apresentada a prática das danças africanas. “De lá para cá, não parei mais”.

A partir de 1987, a ativista conheceu o movimento negro brasileiro em encontros no Rio de Janeiro e Brasília. Na capital federal, ela lembra que os mato-grossenses chegaram a celebrar os 300 anos de Zumbi dos Palmares, em 1988. “Saímos daqui de um ônibus e ele quebrou não sei quantas vezes. Chegamos e já havia acabado a marcha de Zumbi”.

O ano seguinte, 1989 marca o primeiro encontro da Consciência Negra em Mato Grosso, com abertura no Liceu Cuiabano. “A gente colocou mil pessoas ali. Nunca tinha tido nada assim. A negrada tudo ali, excluída e descriminada, se sentiu no céu”, lembra.  

Em julho de 1990, morre o pai de Nieta e ela reafirma para si o protagonismo da luta, mobilizando outras mulheres a incorporar a questão de gênero nas pautas da negritude. “Pensei ‘o que fazer?’. Mas eu já estava incorporada no movimento, já tinha 22 anos e era hora de dar continuidade a luta”.



Protagonismo feminino

Antonieta passou a reunir suas companheiras de militância para discutir efetivamente gênero e raça a partir de 2001. O agrupamento passou a se reunir na sede da Central Única dos Trabalhadores, no bairro Araés, todos os fins de semana.

“Começamos a perceber que nossa voz como mulheres negras no movimento negro era só para dançar, cantar, sorrir e cozinhar. Quando a gente colocava nossas pautas acabava a reunião. E nós sabíamos que poderíamos fazer mais e participar efetivamente”, complementa.

No dia 12 de outubro de 2002, o Instituto das Mulheres Negras de Mato Grosso foi criado, segundo Nieta, “sem nenhuma pretensão”, para discutir política sem a necessidade do comando de um homem. Em 2020, o Imune completa 18 anos construindo políticas voltadas para mulheres, inseridos nos movimentos Articulação das Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Rede Nacional de Mulheres Negras e Coalisão Negra de Direitos.

Antes disso, a mobilização de mulheres negras em Mato Grosso partiu da formação do grupo de dança ‘Filhas de Oxum’, no fim da década de 1980, o qual integrou por 22 anos. “Foi um grupo muito legal e discriminado. Chamavam a gente de macumbeira. Fazíamos apresentações nas igrejas e nas escolas. E esse trabalho da dança afro cresceu em proporção imensa, a gente rodava os municípios dando oficinas”, lembra Nieta.

Zizele e Lupita, por sua vez, já colheram os frutos plantados por mulheres da geração de Nieta, de conquista de espaço no movimento racial. “Desde que cheguei na universidade eu me deparei com muitas mulheres na posição de liderança. Mas não é só estar presente, mas propondo”, afirma Lupita.

“Para mim, o movimento social negro é uma experiência de mulheres o tempo todo em movimento e homens negros acompanhando essa movimentação”, conta. Nós somos o pescoço do movimento e das nossas casas. Somos base e alicerce da organização dos movimentos negros no Brasil. O que acontece é que nós temos um perfil violento patriarcal imposto pelos colonizadores, que é um perfil masculino, mas não é um perfil negro”, complementa Zizele.
 
Nieta reafirma o protagonismo feminino como cultura dos povos africanos e afro-brasileiros, que ganha maior evidencia com a organização política das mulheres negras. “Lideranças quilombolas, povos de terreiro, são lideradas por mulheres. Sempre tivemos à frente das lutas, mas ela não estava evidente”.
Clique aqui, entre na comunidade de WhatsApp do Leiagora e receba notícias em tempo real.

Siga-nos no Twitter e acompanhe as notícias em primeira mão.


 

0 comentários

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do site. É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. O site poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

 
Sitevip Internet