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Notícias / Entrevista da Semana

26/07/2020 às 07:57

O novo normal da Cultura: 'estamos cada vez mais conectados, é um caminho sem volta'

Para o gestor cultural Jan Moura, a Lei de Emergência Cultural pode revolucionar o setor por seu caráter de descentralização

Maria Clara Cabral

Em março, a covid-19 chegou ao Brasil mostrando seu potencial devastador. Além das muitas vidas perdidas, o novo coronavírus fragilizou outras tantas, pegando de surpresa trabalhadores da Cultura, e de diversos setores econômicos, que em muito dependem da multidão. Espetáculos foram rapidamente cancelados, equipamentos culturais esvaziados, artistas e técnicos foram alguns dos primeiros a se verem sem renda diante da urgência do distanciamento social.

Foi assim que o contexto pandêmico evidenciou a necessidade das políticas públicas, especialmente aquelas voltadas para setores e regiões historicamente colocadas à margem da "indústria" nacional – como é a Cultura e o estado de Mato Grosso. Nesse âmbito, expôs, ainda, a fragilidade da política de eventos isolados, em detrimento das políticas de estado para a cultura em suas diversas dimensões: simbólica, cidadã e econômica.

Diante disso, agentes culturais foram obrigados a se reinventar, em meio a outras prioridades coletivas. E apesar do desgaste que o processo pode acarretar, experiências colocadas em práticas desde então, tanto pelo poder público, quanto por iniciativas independentes, vêm apontando caminhos possíveis para a construção do “novo normal”.

Em maio, Mato Grosso vivenciou o que até as primeiras semanas de distanciamento social seria inovador. Uma mostra de lives realizada pelo Secretaria de Estado de Cultura Esporte e Lazer (Secel), o 'Festival Cultura em Casa' remunerou centena de artistas para desenvolverem trabalhos remota e virtualmente.

Recentemente, após pressão de movimentos sociais da cultura, uma lei nacional, a Lei de Emergencial Cultural – Aldir Blanc, foi aprovada e segue em processo de regulamentação.  

O uso das tecnologias, já em evolução há décadas, não foi o único aspecto a ser finalmente explorado. Conforme o artista, produtor e doutor em Cultura Contemporânea Jan Moura, a própria ideia de cultura foi impactada. A necessidade de conexão se mostrou não só através da técnica, mas da demanda humana pela coletividade em diversos aspectos da vida, obrigada ao isolamento social.

Em entrevista ao Leiagora, Jan Moura, que é superintendente de Políticas Culturais da Secel, falou sobre esse novo momento dentro das perspectivas de ação da pasta, com a aplicação da nova Lei e o desenvolvimento do Plano Estadual de Cultura.

A partir de suas experiencias com gestão pública e privada, tendo coordenando o Programa Cultura do Sesc Mato Grosso, ele também apontou potencialidades e desafios da cultura mato-grossense. Confira:


Leiagora – Qual o principal desafio da produção cultural no contexto da covid?

Jan Moura - Manter ativa a criação. A criação artística é base principal de qualquer rede produtiva da Cultura. Quanto mais produção a gente tem, mais pessoas são instigadas a produzir e isso cria um círculo positivo. Temos vivido um momento muito delicado para a saúde do país. E saúde está na ordem das necessidades essenciais, e, claro, a produção artística não. Então precisamos nos desafiar diariamente a encontrar alternativas que incentivem a produção, consequentemente o consumo cultural, e, por fim, a economia. Fazendo assim a máquina girar e não enferrujar. Mas como fazê-lo, quando a base principal da fruição cultural se baseia no encontro, físico, no contato, na relação entre as pessoas? Precisamos fazer uso de todas as ferramentas que estão disponíveis neste momento, e produzir, produzir, produzir. Construir obras, aproveitar para se capacitar, construir relações. E sempre que possível oferecer ao público, de maneira segura.

Leiagora – A pandemia transformou comportamentos sociais, impactando diretamente na forma de produzir/consumir cultura com a utilização das tecnologias, por exemplo. O que os artistas e a Secel devem “aproveitar” deste período? Ações no atual formato devem permanecer no pós-pandemia?
 
Jan Moura - O mais interessante é pensarmos que as tecnologias digitais que hoje são as nossas quase que únicas ferramentas de veiculação das produções, não foram criadas neste século. Mas parece que só agora essas tecnologias se tornaram um meio possível. O audiovisual tem mais de 120 anos, a internet foi criada em 1969, mas foi nos anos 1990 que elas explodiram; de lá para cá já se foram mais de 30 anos. A pandemia nos obrigou a olhar para a internet e entender que ela, mais do que nunca, é uma aliada da arte.

Tivemos que nos reinventar, reinventar conceitos, e largar nossa compreensão sobre artes da presença, do espetáculo, dos shows. Acho impossível voltarmos ao que vivemos no passado, estamos construindo um novo normal. Após tudo isso, as lives, espetáculos digitais, oficinas, encontros presenciais ou virtuais, serão ainda mais híbridas, misturadas. A pandemia também fez com que repensássemos, inclusive, o que entendemos por arte. Estamos cruzando a fronteira do contemporâneo, o que virá depois, com certeza precisará ser renomeado.

Leiagora  O que a Lei de Emergência torna possível, na prática, para o estado e os municípios?

Jan Moura - A Lei Emergencial Cultural - Aldir Blanc foi uma construção encabeçada por alguns parlamentares que se sensibilizaram com pedidos de artistas de todo o país. Esse dinheiro estava parado nas contas do governo federal. A Lei não faz cumprir exatamente o papel ao qual o Fundo Nacional da Cultura foi criado. Pela sua característica primordial de descentralização dos recursos, fará uma grande revolução neste país. Muitos municípios que nunca tiveram orçamento para desenvolver ações de incentivo à cultura poderão construir suas próprias políticas. Inclusive a Lei reacende o debate em torno do Sistema Nacional da Cultura, que andava esquecido pelas atuais gestões.

Leiagora – O que falta para que o recurso comece a ser aplicado?

Jan Moura - Estamos aguardando a regulamentação, mas não de braços cruzados. A Secel tem trabalhado arduamente, apesar dos protocolos de segurança e isolamento social, na construção de uma plataforma de mapeamento da produção, item indispensável para aplicação dos recursos. Além disso, estamos estabelecendo diálogos com os municípios, propondo alterações nas leis que regem a contratação do poder público para facilitar o acesso, capacitando os municípios para que também consigam realizar suas ações. E principalmente desenvolvendo canais de escuta para entender as demandas trazidas pela sociedade, em especial dos trabalhadores da cultura.

A previsão é que os recursos já estejam disponíveis em meado de agosto. Depois desse repasse estados e municípios têm um prazo de até 120 dias para aplicação. Temos trabalhado para que assim que o recurso seja disponibilizado a gente possa fazer chegar à classe trabalhadora da cultura em um curto espaço de tempo. Por hora, estamos trabalhando, juntamente com o Fórum Nacional dos Secretários de Cultura, pela aceleração desta regulamentação e pelo repasse destes recursos.

Leiagora – No geral, o que a cultura mato-grossense precisa para deslanchar economicamente? 

Jan Moura -
O que falta é criarmos políticas estruturantes para além do restrito processo de feitura de eventos passageiros e sem permanência. Precisamos criar demanda, ampliar o acesso a financiamento e estar presentes na formação dos jovens. Temos aqui um Plano Estadual de Cultura, construído a muitas mãos com a participação da sociedade. No ano que vem teremos novas conferências que atualizaram este plano. Precisamos batalhar pelo cumprimento do plano.

Também precisamos pensar para fora do estado. Nossos artistas precisam ultrapassar as fronteiras de suas localidades. E isso se faz com o trabalho forte desenvolvido pela Economia Criativa, por editais de circulação. Já demos alguns passos, mas é um trabalho de longo prazo que precisa ser feito, independente de governo, como política de estado.

Leiagora – Quais as principais potencialidades dos projetos culturais apresentados e desenvolvidos em Mato Grosso?

Jan Moura -
Mato Grosso tem o privilégio de estar localizado no centro do país. Se por um lado ficamos afastados dos grandes centros, temos a oportunidade de reconfigurar inclusive essa ideia de centro, e criar novos fluxos. Esta condição territorial nos coloca em contato com o restante do país, que já apresenta uma gama incrível de diversidade (Amazônia, Araguaia, Pantanal, Cerrado, etc.). Também sofremos influência dos países vizinhos e recebemos imigrantes de diversas regiões, o dá ao estado uma gama gigante de expressões, além da produção cultural tradicional (Quilombola, Ribeirinha, Indígena, etc.). Destaco a nossa produção musical. Temos artistas se destacando nacionalmente com uma musicalidade peculiar de rap, siriri, reggae, etc. Além das manifestações tradicionais da baixada cuiabana ganhado o mundo afora.

Temos ainda uma produção cultural contemporânea que se banha desta tradição e mistura com influências latinas e brasileiras, criando uma gama de produção rica e potente. Tudo isso também dá ao gestor da cultura um super desafio: pensar políticas que equilibrem o acesso, daqueles que mais precisam de incentivo e manutenção de seus fazeres culturais, e ainda potencializar aquilo que temos de mais vibrante. Nossa potência está principalmente nessa capacidade de se misturar e se deixar influenciar pela cultura do outro, sem perder as referências.

Leiagora – Como as questões identitárias da população negra e LGBTQI+ podem dialogar com as artes no desenvolvimento de políticas públicas?

Jan Moura -
O primeiro passo é desconstruir a velha ideia que cultura é exclusividade da produção artística. Cultura é mais que isso, é tudo aquilo que dá significado à nossa existência, é o filtro que eu olho para o mundo. Pensar políticas afirmativas é mais do que um diferencial de uma política, é uma obrigação, porque uma política pública vem para responder a uma demanda social. Precisamos entender de vez que cultura é um direito. 

A produção cultural das populações negras e LGBTQI+ foram durante muito tempo negadas, caçadas e quando muito, relegadas a circuitos restritos de acesso. É papel do estado fazer uma reparação histórica e entender o papel que a cultura cumpre na desconstrução de preconceitos. As questões identitárias não só dialogam com as artes, elas são também a própria manifestação cultural em sua forma original.

Leiagora – De que forma populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas podem ser contempladas pela pasta cultural?

Jan Moura - Desde a aprovação do Plano Estadual de Cultura, estas populações são prioridade em todos os editais, projetos e políticas construídas pela Secel, mas ainda há muito a ser feito. Por um longo processo de exclusão, estas populações não conseguem ou não entendem que estão inclusas. Seja primeiro pela dificuldade de acesso, a burocracia e a própria máquina da secretaria que opera de forma a dificultar a entrada, ou pela dificuldade por parte de gestores públicos de entender que práticas cotidianas sejam "cultura".

Precisamos pensar a cultura como elemento identitário, e identidade é construída não só com tinta e grafismo, ela é vivida. Pensar políticas para estas populações é desafiador, já que é preciso primeiramente se desvencilhar das amarras da "alta cultura". Entender que a própria vida, formas de pensar, expressar, sobreviver são aquilo que dá cor à essas pessoas. É preciso salvaguardar práticas, manter registro, estudo e principalmente dar condições que estas práticas se mantenham vivas o quanto for possível para que mais pessoas tenham acesso a elas, especialmente as pessoas da própria comunidade.

Leiagora – Quais os principais avanços e retrocessos no âmbito estadual e nacional para a Cultura nos últimos anos?

Jan Moura - As políticas para a cultura tiveram grandes avanços no governo Lula, especialmente com a vinda do Ministro Gilberto Gil e Juca de Oliveira, com a ampliação do conceito de cultura, implantação do Sistema Nacional de Cultura e principalmente com a aclamada Lei Cultura Viva, de reconhecimento dos pontos de cultura. Mas tudo isso foi sendo desconstruído com o governo Temer e hoje atinge um grande retrocesso, especialmente com o desmonte da secretaria e pela interrupção das políticas que haviam sendo realizadas.

Em Mato Grosso, o Sistema Estadual de Cultura foi aprovado no ano de 2016. Houve um esforço nas últimas gestões para que houvesse o cumprimento das principais metas do plano e muita coisa já avançou. Nossa batalha tem sido pela ampliação do orçamento. Hoje contamos com um pouco mais de 40 municípios em Mato Grosso com seus sistemas instalados, mas não chega a 10 que realmente tem desenvolvido políticas para a transformação da realidade local. Precisamos focar nos planos, eles foram construídos pela sociedade. Seguindo o exemplo de diversos estados, estamos mantendo aqui um esforço para ampliação de municípios, construindo redes entre eles e entre eles e o estado.

Leiagora – Qual é o “lugar” de atuação do poder público e das instituições privadas na promoção da Cultura no estado?

Jan Moura -
 O Estado cumpre um papel fundamental na política para o desenvolvimento da cultura. Não dá para encarar a cultura como encaramos outros setores da economia. Há peculiaridades. Tirando os artistas que conseguem viver da sua arte, os ligados à indústria cultural, a cultura não anda sozinha. Não dá para o mercado regular tudo. Estamos falando da vida das pessoas, daquilo que elas são feitas. A cultura tem de estar nas agendas das políticas públicas.

Por não ser um artigo de primeira necessidade, políticas para a cultura costumam ficar relegadas a pequenos ou quase inexistentes orçamentos e a departamentos anexos a outras secretarias. Isso causa um atrofiamento da cultura, e uma massificação de elementos da indústria cultural, pasteurizando a sociedade.

As instituições privadas também cumprem papel fundamental nesta rede. Entender a cultura como um retorno de responsabilidade social é um passo importante para construir um legado na sociedade.

Leiagora – E como você entende, enquanto gestor e pesquisador, o papel nas iniciativas independentes de artistas e coletivos na cidade?

Jan Moura - 
Fundamental. Os artistas e coletivos são o porta-vozes dos elementos culturais. Eles provocam fissuras nos nossos já gastos modos de ver o mundo. Forçam a sociedade a se enxergar. Apesar de ter certeza que o Estado deve estar presente e fomentando as produções artístico-culturais, é fundamental que os trabalhadores da cultura criem mecanismos para o seu próprio desenvolvimento e principalmente sua sustentabilidade. Não há mais espaço para o artista "gênio", isolado em seu ateliê. É preciso se mover. É uma forma bem potente de gerar movimento é por meio da coletividade. Nos apoiarmos uns nos outros, encontrar mecanismos alternativos de trocas econômicas, colaboração mútua, etc. é um desafio, mas necessário e urgente. E temos bons exemplos aqui destas iniciativas. Artistas que se associam com produtores culturais, ou que se associam com comunicadores, e trocam serviços e se fortalecem tem sido muito recorrente, e isso tem mudado radicalmente a forma como vemos a cultura na contemporaneidade. Estamos cada vez mais conectados, e isto é um caminho sem volta. E que bom.
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