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09/08/2020 às 08:07

Entrevista da Semana: coibir violência doméstica é desconstruir o machismo e o patriarcalismo

CNJ lançou a campanha Sinal Vermelho para ajudar as vítimas de violência. Em MT, crimes de feminicídio tiveram aumento de 68%

Luzia Araújo

Entrevista da Semana: coibir violência doméstica é desconstruir o machismo e o patriarcalismo

Foto: Arquivo Pessoal

Uma a cada três mulheres já foi vítima de violência física ou/e sexual dentro do próprio lar. Com a chegada da pandemia do novo coronavírus as atenções para esse tipo de crime aumentaram, já que as vítimas foram obrigadas a passarem mais tempo com o agressor, em decorrência da necessidade do isolamento social, para conter a propagação da Covid-19.

No levantamento feito pela Superintendência do Observatório de Violência da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp-MT) apontou que o número de feminicídios ocorridos nos seis primeiros meses, deste ano, aumentou 68% em relação ao mesmo período do ano passado.

No entanto, a maior parte dos outros crimes contra a mulher apresentou redução, como a ameaça que diminuiu 15% em relação ao mesmo período do ano passado. Diante desse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou a campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica para ajudar as vítimas desse crime silencioso a denunciarem o agressor com um simples sinal na palma da mão. 

Para falar sobre a campanha e os desafios para se combater a violência nos lares a reportagem do Leiagora conversou com a Coordenadora de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da Polícia Militar, tenente-coronel Emirella  Martins.

Leiagora - No início deste semestre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou a Campanha Sinal Vermelho Contra a Violência Doméstica. Como ela funciona e qual a importância dela para combater esse crime?

Ten Cel PM Emirella - A vítima de violência faz um “x” em vermelho na palma da mão, o que pode ser feito com um batom, pois é algo bem comum para a mulher, e mostra este sinal de forma discreta para um atendente de farmácia ou drogaria. Este atendente irá acolher a vítima e ligará para Polícia Militar que atenderá a ocorrência com prioridade. Caso a vítima não fique no local, o atendente irá colher informações essenciais como nome e endereço e informará para PM.

A PMMT aderiu à campanha Sinal Vermelho, pois somos uma instituição importante no processo da garantia dos direitos humanos, nele incluso as mulheres. Entendemos que toda campanha pelo fim da violência doméstica é importante, pois cria oportunidades e consciência quanto a violência doméstica, além de promover seu necessário diálogo. 

Leiagora - Por que as farmácias foram escolhidas para receber essas denúncias? como identificar quais delas estão participando da campanha?

Ten Cel PM Emirella - A coordenação da campanha entendeu que as farmácias e drogarias são ambientes mais amistosos. Podemos acrescentar também que em tempos de pandemia, por ser um serviço essencial, é muito utilizado e totalmente disponível à sociedade. Em algumas cidades decidiram identificar com um cartaz, mas independente disso temos um compromisso de sindicatos dos farmacêuticos e drogarias de Mato Grosso em aderir à campanha, e isso já aconteceu com várias redes. 

Leiagora - O que acontece após denúncia? 

Ten Cel PM Emirella - Com a formalização da denúncia a vítima terá a oportunidade de pedir medidas protetivas de urgência, para sua proteção e de seus filhos, além de outros serviços disponíveis. Todas as informações sobre a violência vivida, relatos e provas, são reunidas pela Polícia Civil e encaminhadas ao Poder Judiciário, podendo iniciar o processo criminal e civil em desfavor ao agressor, de acordo com o caso. 

Leiagora - Mato Grosso conta com uma rede para apoiar essa mulher e evitar que ela se torne vítima novamente?

Ten Cel PM Emirella - Sim. Existe uma rede de atendimento à vítima de violência doméstica composta por instituições públicas e organizações da sociedade civil em estruturação. O objetivo, além de dar celeridade e efetividade no atendimento, é evitar a revitimização institucional, disponibilizar meios para sair do ciclo de violência, evitar que retorne ou assuma novo relacionamento violento, bem como interromper qualquer dependência da vítima para com o agressor, emocional e/ou financeira, por meio do empoderamento feminino. Pela representatividade estadual buscamos fomentar a criação das redes nos municípios do estado.

Leiagora - Neste mês a Lei Maria da Penha completa 14 anos de existência. Na sua opinião, existe uma punição adequada para coibir atos de violência doméstica contra a mulher no país ou ela ainda precisa ser melhorada? 

Ten Cel PM Emirella - Nossa lei é considerada uma das 3 melhores do mundo. Já demonstrou ser efetiva, mas para isso precisa ser de fato aplicada. Ela possui 3 funções: prevenção, proteção e punição. Ficamos muito focados na punição, mas a forma mais eficaz em coibir uma violência doméstica é desconstruir a base que dá sustentação à toda violência doméstica, ou seja, o machismo e o patriarcalismo. Mas independente disso, as atualizações em nossa legislação tem ocorrido sempre que há necessidade, à exemplo da Lei de Feminicídio, como qualificadora do crime e o descumprimento das medidas protetivas de urgência passarem a ser consideradas como crime.

Leiagora - O número de feminicídios ocorridos nos seis primeiros meses de 2020 em Mato Grosso aumentou 68% em relação ao mesmo período do ano passado. Qual a sua avaliação sobre esse número e a que se deve esse aumento?

Ten Cel PM Emirella - Sem dúvida a pandemia tornou a vida das vítimas de violência doméstica mais difícil. Mas é importante deixar claro que a covid-19 não é a responsável pelos atos de violência no lar, nem tão pouco pelo aumento dos números. Mas é importante compreender todos os fatores que envolvem a violência, em especial neste momento de pandemia, até mesmo para desenvolvermos ações que sejam de fato eficientes para ajudar as vítimas.

Neste sentido, a medida sanitária para evitar a contaminação, qual seja, o isolamento social, é justamente um fator de risco para vítimas de violência doméstica. Em uma situação em que a mulher está isolada com o agressor, este já não se preocupa em deixar as marcas de seus atos.

Além disso, outros fatores de risco são potencializados pela pandemia como o controle do agressor sobre a mulher, inclusive fazendo o monitoramento do acesso da vítima ao próprio celular e redes sociais, passando mais tempo juntos, dificultando até o pedido de socorro e outros fatores como a própria situação de desemprego e questões econômicas.

Todas estas situações acabam intensificando os momentos de tensão, aumentando os episódios de violência e a cada novo episódio a tendência é que se agrave chegando ao ápice com o feminicídio, a morte de mulheres decorrente da violência doméstica.  

Leiagora - Cuiabá se prepara para ganhar um plantão 24 horas para atender mulheres vítimas de violência doméstica. Qual a importância desse serviço à vítima? 

Ten Cel PM Emirella - A denúncia é um dos passos que a vítima de violência doméstica pode tomar para romper com o crime e responsabilizar o agressor. Portanto, é essencial que o Poder Público disponibilize meios para denúncia. Não obstante a existência e trabalho da Polícia Militar no enfrentamento deste crime, por meio do atendimento de ocorrências e do programa de policiamento Patrulha Maria da Penha, a Delegacia Especializada de Defesa da Mulher é uma das principais portas de acesso a rede de atendimento, podendo ser comunicada a qualquer momento, independente de quando a violência foi vivida.

Além disso, temos dados os quais mostram uma incidência significativa dos atos violentos no período noturno, horário em que a delegacia especializada não possuía atendimento. Com um plantão 24 horas teremos um serviço essencial no momento em que a mulher mais precisa. É importante registrar também que esta será mais uma porta de acesso para as vítimas, uma vez que atual delegacia não será fechada. Sendo um serviço especializado, para nós da Polícia Militar, quando atendermos uma ocorrência de violência doméstica, no período noturno, teremos a oportunidade de fazer o encaminhamento desta vítima diretamente à Delegacia de Defesa da Mulher, o que, até o momento, é realizado junto ao plantão geral da Polícia Civil. O foco de todos os benefícios e trabalho sempre será as vítimas de violência doméstica.  

Leiagora - Um serviço que vem ajudando as mulheres em Mato Grosso é a Patrulha Maria da Penha. Há quanto tempo ela existe, quantas mulheres estão sendo atendidas pelos policiais militares e como ela tem mudado a vida dessas vítimas?

Ten Cel PM Emirella - O programa de policiamento patrulha Maria da Penha constitui em um serviço realizado pela PMMT destinado às vítimas de violência doméstica que possuem medida protetiva de urgência concedida pelo Poder Judiciário e também precisam do acompanhamento policial militar para garantir o fiel cumprimento das ordens judiciais e evitar reincidências da violência.

A guarnição empenhada neste serviço não atende ocorrências de emergências de violência doméstica geradas pelo 190. É um trabalho realizado em parceria com as varas de violência doméstica e em rede com as instituições de atendimento. A frequência do acompanhamento é definido de acordo com cada caso e pelo tempo que a medida protetiva de urgência estiver em vigor.

O autor dos fatos também é visitado, apenas uma vez, com o objetivo de informá-lo que a vítima está sendo acompanhada pela PMMT, reforçando as ordens judiciais que deve cumprir, bem como as consequências, caso não obedeça. A visita ao agressor acaba assumindo um efeito inibidor no descumprimento, uma vez que também constitui crime.

A primeira iniciativa do programa de policiamento patrulha Maria da Penha realizado pela PMMT, nos moldes atuais, foi no final do ano de 2017 no município de Barra do Garças. Em Cuiabá, tivemos um projeto piloto no final do ano de 2018, para então avaliarmos a implantação institucionalizada. No ano de 2019 o serviço foi desenvolvido pela PMMT em nove municípios, fiscalizando o cumprimento das medidas protetivas de urgência concedida para 1.822 mulheres, com efetividade em 93,30% dos casos.

No primeiro semestre deste ano, nas mesmas cidades, foram acompanhadas 614 mulheres com efetividade de 96,24% dos casos. E, a partir do dia 6, em solenidade que institucionalizou o programa de policiamento patrulha Maria da Penha, também como ato alusivo aos 14 anos da Lei 11,340/2006 – Lei Maria da Penha, a PMMT disponibilizará o serviço em todo o Estado, por meio dos seus Batalhões e Cia Independentes distribuídos nos municípios e pelos Comandos Regionais em Cuiabá e Várzea Grande.

Nosso próximo passo para iniciar os atendimentos é capacitar os PMs que serão empenhados na atividade, trabalho que está previsto para iniciar este mês ainda. Consideramos como principal benefício às vítimas, justamente, as mudanças positivas que podemos promover em sua vida, qual seja, o resgate de sua dignidade, retomando sua vida com autonomia. Temos a segurança que estamos no caminho certo, não apenas pelos números positivos, mas principalmente pelos relatos das mulheres atendidas. É uma política de segurança pública efetiva. 

Leiagora -  Qual o maior desafio de combater a violência doméstica e como acabar com esse crime? Na sua avaliação, o quanto a cultura machista e patriarcal influência com relação à violência doméstica? E o que fazer para mudar esta realidade?

Ten Cel PM Emirella - São vários os desafios e é difícil apontar o maior. No momento, decorrente da pandemia, temos como principal desafio conseguir ter acesso aos casos de violência doméstica, em que as vítimas não conseguem denunciar. Este tipo de violência tem relação direta com a cultura machista e patriarcal estruturada em nossa sociedade. Todo este caldo comportamental passado de geração em geração constitui a premissa e sustentação deste crime.

Diante deste cenário, teremos muito trabalho para pôr fim a violência doméstica em nosso país, pois quanto mais enraizada a cultura, mais difícil mudar o comportamento das pessoas. Por isso, temos que iniciar o quanto antes. A melhor opção é a educação de nossas crianças e reeducação dos agressores e vítimas também. Que possamos ensinar nossos filhos e filhas que homens e mulheres são de fato iguais e não apenas um texto em nossa constituição federal.
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