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14/03/2019 às 15:22 | Atualizada: 23/04/2019 às 11:26

Pré-lançamento do selo Arcada traz quatro títulos de autores locais

Josiane Dalmagro

No sábado (16), finalmente os curiosos e devoradores de livros puderam folhear quatro novos títulos de autores regionais. Tratou-se do pré-lançamento do Arcada, que trouxe obras cuiabanas de Lorenzo Falcão, Rodrigo Meloni, Julio Custódio e Danilo Fochesatto. O vento ocorreu no Sebo Raro Ruído, localizado na rua principal do Boa Esperança.

O evento marca também o lançamento do selo/editora Arcada, que dos escritores, criada para estimular a produção autoral literária regional.

Entre prosa e poesia, eles publicam os quatro primeiros títulos: “Distribuidora Falcão – versos no atacado e varejo”, de Lorenzo Falcão; “Você derrubou coisas pelo caminho”, de Julio Custódio; “Lá, onde uma porta jamais parou de bater”, de Danilo Fochesatto e “Coitado do homem cujos desejos dependem”, de Rodrigo Meloni.

Segundo Lorenzo Falcão, após a primeira publicação, o grupo irá buscar autoras mulheres para a próxima leva de livros da Arcada.

Tabela de preços

R$20 - Danilo Fochesatto - Lá, onde uma porta jamais parou de bater;

R$20 - Júlio Custódio - Você derrubou coisas pelo caminho;

R$20 - Lorenzo Falcão - Distribuidora Falcão: versos no atacado e varejo;

R$15 - Rodrigo Meloni - Coitado do homem cujos desejos dependem;

R$65 - Preço promocional para quem levar os quatro livros.


Para quem não conhece o trabalho dos autores, segue um conto reproduzido do livro "Lá, onde uma porta jamais parou de bater", que está na obra a ser lançada por Danilo Fochesatto:

O campeão

Atrás da cortina do palco da vida, nenhum estereótipo é exagerado. Principalmente porque o fim não é um espetáculo. Talvez por isso, cada vitória, cada derrota, possua suas indeléveis nuanças. Em casos catárticos, como o ora em apreciação, quem sorria por último agora apenas ri, em absoluta estranheza para quem não entendeu a dramaturgia do combate. Deixe-me ver, então, se explico tal espécie de teatro interior.

Ab ovo, havia um tipo de confusão mental hors concours. Depois, entre brumas silenciosas, surgiram estátuas espetacularmente vivas. Entre elas, distingui as de um sapo e um bezerro, que, amuados, contavam de zero a nove sem parar. Contra elas, balbuciei qualquer coisa com dificuldade patológica. Então, ao fundo, rente à maca, brotou o rumor de uma plateia espectral. Quando acordei, cronicamente ensopado e colado ao leito mormacento, descobri que se tratava do corpo clínico do hospital a discutir o meu caso. Era impressionante saber o quão barulhentas as pessoas podiam ser. Passaram à anamnese, enquanto, aos poucos, eu retornava do outro mundo e me dava conta de que, quando doente, o corpo permite mais objetividade à mente.

– Tem certeza de que foi assim que aconteceu?

– Ora, doutora, é claro que tenho.

– Certo, certo, e o que mais?

– Bem, eu lembro de que... – e esqueci o que ia dizer.

– Vamos! – insistiu a chefe da equipe médica– Tente se lembrar da luta!

O teto escureceu, balancei a cabeça e quase desmaiei.

– Não consigo.

– Esforce-se, garoto! – determinou-me, num ato seguido pelo que pareceu ser uma sacudida na cama.

– Doutora, eu... Como posso dizer? Eu me lembro de que... Sim, é isso. Eu lembro que estava de guarda baixa. O desafiante me aplicou o clinch e me prendeu em torno da garganta com o rebitamento thai. Em seguida, acertou uma poderosa série de joelhadas no meu rosto. Senti meu nariz sangrar e deixei o corpo cair com tudo para dar potência à cotovelada direcionada em sua coxa. Ele deve ter sentido aquele golpe porque eu caprichei. Daí saltei em sua direção desferindo um kao dode. Mas ele recuou, e minha joelhada passou sem efeito.

– Certo, certo, prossiga.

Certo, certo, prossiga, repeti mentalmente antes de apelar.

– Porra! Por que tenho de te contar essas coisas? Você não assistia a luta do lado de fora do ringue?

– Sim, garoto, eu presenciei o combate. Mas peço que me conte tudo, em detalhes, para avaliar a extensão de seu trauma.

– Meu o quê? – grunhi.

– Vamos lá! O que aconteceu depois disso?

– Bem, depois disso soaram o gongo. Cada um foi pro seu corner. Meu técnico, com seu inseparável juzu de cento e oito contas, desfiou lorotas que nem ouvi, mas que, por osmose, me inspiraram confiança. Eu então algemei um trovão e o enfiei na luva!

– Certo, certo, até aqui tudo bem – ponderou a diplomada, realizando anotações numa prancheta.

– Ah, esper’aí que tem mais! – eu disse, feito uma criança a relatar suas desventuras à avó que lhe põe no berço – Quando voltamos a lutar, o desafiante cresceu pra cima de mim num átimo de tempo. Imprimindo seu ritmo frenético de boxe, encontrou espaço para um uppercut com o cotovelo, em diagonal, e, na sequência, me tombou com um chute que nem sei de qual perna saiu. Os flashes pipocaram. O árbitro iniciou a contagem. Ao ver sangue, a plateia urrou de emoção. Os apostadores vencedores, do lado de fora da rinha, coletavam o fantasma de papel-moeda dos perdedores. E eu, que tentava me mexer, mas não conseguia, eu senti que uma parte de mim ia embora e outra ficava ali na arquibancada assistindo a mim mesmo.

– Que tragédia, boxer! – irrompeu uma dogmática enfermeira, cuja presença até então eu não percebera – Quando chega a hora de sentirmos a pancada, geralmente não sabemos o que nos atingiu, não é mesmo? E eu não estou falando apenas de muay thai... – todos se entreolharam, mas nada disseram – Muito bem, doutora, penso que o infortúnio deste lutador tem outra origem. Estamos no Ano do Rato, não é mesmo? Intuo que ao não praticar corretamente os rituais, ele insultou os deuses que deveriam lhe trazer abundância. Quando quis impôr seu boxe tailandês e o reconhecimento de seu talento contra a vontade dos céus, foi castigado por desobediência... – e ao fim de breve reflexão, a enfermeira adotou o típico tom da autocorreção – Esse é o problema! Enquanto houver sonhos, infalivelmente teremos de eleger um campeão. Sempre um outro tipo, que também perecerá e será esquecido.

– Ok, já chega! – decretou a médica – Ouça-me com atenção, garoto. Você ficou desacordado por quase três dias. Agora que acordou, está meio confuso, está misturando sonho e realidade... – enquanto ela tentava me iludir com maciez clínica, nitidamente impelida por um anseio profissional de consolar os necessitados, tentei, sem sucesso, me levantar – Calma, garoto, calma. Não se precipite. Afinal, você ainda é o campeão! – bradou em meio às finas lágrimas que lhe escorriam pelos desfiladeiros do rosto – Teu desafiante foi desclassificado por trapacear. Após a luta, ele confessou ter ingerido um chá para não sentir a dor de teus golpes. O safado estava dopado feito um pajé. Está me entendendo, garoto? Você ainda é o atual campeão de muay thai! – frisou a médica, absurdamente emocionada.

Em busca de cura, fechei os olhos, já que isso, puxar as cortinas, eu ainda conseguia fazer. E fiquei pensando à toa, mens insana in corpore insano, ao passo que voava virtualmente para fora do corpo preso à cama quente, a uma vida a partir dali execrável. Dizia coisas bem intencionadas para mim mesmo. Comemorava, por dentro, a redenção na anomalia. E vibrava, desvairado, imóvel. Sou o vencedor, dizia. Sou o vencedor, repetia, esboçando um sorriso torto. Sou um inválido tetraplégico com vértebras fraturadas. Sou o campeão que nunca mais vai lutar. Por Buda, eu sou o campeão! E de meu túmulo nascerão mil tsurus.
 
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