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04/10/2020 às 08:01 | Atualizada: 04/10/2020 às 08:05

'Presos querem vir para Mato Grosso porque aqui não tem controle', avalia juiz da Execução Penal

Camilla Zeni

Há três meses o município de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, “abriu” as portas para a maior penitenciária de Mato Grosso. No entanto, a construção, que levou mais de 10 anos para ficar pronta, não tem 10% dos corredores ocupados: apesar das 1.008 vagas disponibilizadas na primeira etapa da inauguração, apenas 80 presos foram transferidos para o novo espaço, uma mudança que, segundo o diretor do Núcleo de Execuções Penais de Cuiabá, juiz Geraldo Fidelis Neto, quase não tem impacto na superlotação vivenciada nos presídios mato-grossenses.

Ao Leiagora, Fidelis destacou que há mais de quatro mandatos o Governo do Estado não investe na estrutura do sistema penitenciário do Estado. Nesse caso, ele não quer dizer apenas os espaços físicos, mas com a contratação de profissionais para atuar dentro das unidades. Só de agentes penitenciários, por exemplo, o Estado conta com pouco mais de 3 mil profissionais, frente aos mais de 11 mil detentos.

Fidelis também chamou a atenção para a falta de um espaço onde a execução penal possa ser cumprida em sua integridade. Em Mato Grosso, ao invés do condenado passar por três regimes de pena, ele conhece apenas dois: o fechado e o aberto. O segundo regime, que deveria ser uma introdução de seu retorno à sociedade, porém, não tem. A consequência é centenas de tornozeleiras eletrônicas nas ruas, mas nenhuma garantia de ressocialização e mudança de vida.

Abaixo, confira como foi a entrevista com o magistrado:

 
Leiagora - Doutor, na metade deste ano foi inaugurada nova penitenciária no município de Várzea Grande. O senhor acredita que essa unidade deve aliviar a questão da superlotação dos presídios?

Juiz Geraldo Fidelis - Sim, é a maior penitenciária do Estado, mas não adianta ter o físico, a construção do prédio, se não tiver a área humana, ou seja, mais policiais penais e, principalmente, os profissionais que atendem a penitenciária, como psicólogos, assistentes sociais, advogados, médicos e enfermeiros. A execução penal não é apenas prender as pessoas. Tem a parte de segurança, sim, mas também a de humanização. Diante disso, é fundamental que o Estado contrate pessoas para dar funcionamento nessa unidade que é a maior do Estado. Enquanto não estiver funcionando em sua plenitude, não tem como falar de atenção total às leis da execução penal. Hoje tem 8 mil vagas lá e tem 80 pessoas só, e não tem condições de receber mais pessoas porque não tem equipes sociais, área médica. Está funcionando “a meia-boca”. Então o que importa não é só fazer investimento na área estrutural, embora também é importante. 

Leiagora - E como está a ocupação dos presídios em Cuiabá hoje?

Juiz Geraldo Fidelis -
Temos hoje um sistema superlotado, pessoas dormindo em cima de pessoas. São cerca de 11 mil presos, diminuiu. E a construção nova não resolveu nada, tem 80 pessoas só. É uma área enorme e não aproveitada porque não há recursos humanos.

Leiagora - O senhor fez críticas em relação aos investimentos na área, mas, na sua opinião, o sistema penitenciário, executado do jeito que está, funciona? 

Juiz Geraldo Fidelis -
É fundamental buscar, sim, ampliar a parte física, porque temos 11 mil e poucos presos para 6 mil vagas apenas, então é importante investir na parte física, mas também nos serviços humanos. A aplicação de valores no setor penitenciário não é gasto, mas investimento. Se assim não fizer, teremos uma bomba-relógio daqui a pouco. São pessoas que vão sair para a cadeira sem nenhum preparo para viver na sociedade e vão voltar para o crime. A maioria de lá pode ser trabalhador e deixar o crime, mas se não houver um melhor tratamento, vão sair de lá e voltar para o crime.

Falta investimento, apesar de que essa administração do governador Mauro Mendes está sendo, nessa parte do sistema penitenciário, foi o que mais atendeu a área nos últimos quatro, cinco mandatos. No Taques não aconteceu nada. Um bom governador nessa área também foi o Silval, e depois ele usufruiu do que investiu também. Mas o que mais investiu foi essa administração de agora e isso deve ser feito, para dar um retorno para a sociedade, eliminando a possibilidade de futuros crimes.

Leiagora - Em relação às leis, tem alguma coisa pontual que pode ser feita para melhorar o sistema penitenciário?

Juiz Geraldo Fidelis -
Essa questão é mais ideológica, na verdade. Há quem pense em lotar a cadeia, privatizar o sistema penitenciário, como é nos Estados Unidos. Só que lá, 50% das pessoas que saem da cadeia voltam para o crime, o que mostra que esse não é o caminho. Aí dizem: “vamos prender pessoas menores de 18 anos”, e eu pergunto: “prender onde, se não há espaço nem pro adulto?”. Então são situações delicadas e não é com uma simples canetada que vai resolver o problema. Tem que ser colocada na efetividade todo sistema da execução penal que é bom, desde que haja atenção para o recuperando fazer essa transformação. E para isso tem que ter investimento, que não é barato. Então é uma situação delicada.

Leiagora - E o que o senhor pensa da instituição de colônias penais?

Juiz Geraldo Fidelis -
Aqui mal tem o regime fechado, é muito congestionado. A colônia penal serve para o semiaberto, e aqui não tem esse. Então, salta-sedo regime fechado diretamente para o regime aberto. A tornozeleira não é para evitar o crime. Ela fiscaliza onde a pessoa está e está sendo colocada pela ausência dessa estrutura chamada colônia penal, onde caberia de ser progredido o pessoal do fechado e que iria para o semiaberto. E teria que ter não uma só em Cuiabá, mas várias no estado inteiro, principalmente nas cidades polos, Rondonópolis, Sinop, Tangará, Barra do Garças, Juína. É fundamental, porque se não houver investimentos nessa área, a sociedade vai pagar. Para sair do sistema fechado, da aplicação integral da punição, tem que passar para o semiaberto e depois para o aberto. São três etapas mas agora só temos uma, que é o fechado e que é mal cumprido, porque o sistema está superlotado e não temos equipe. Inclusive, muitas pessoas querem vir para Mato Grosso transferidas porque sabem que aqui não tem o regime semiaberto, é só um. Você vai para São Paulo e na progressão do regime fechado para o semiaberto e vai para a colônia penal. Aqui não, aqui você vai para a rua.

Ano passado encontramos um lugar muito bom, uma escola antiga, arrebentada, uma construção que era só o esqueleto da escola, mas os moradores da região vetaram. Falaram que não teria ali e pronto. Ai fica como estava lá, um ponto de usuário de drogas. Assim que a sociedade quer. A sociedade quer resposta desde que não esteja envolvida, né. É interessante essa questão.

Leiagora - O senhor citou há pouco que a tornozeleira não é um objeto criado para evitar o crime. E é mesmo comum vermos pessoas que deveriam estar sendo monitoradas serem presas por novos crimes. Na sua opinião, onde está a falha? No Estado, no indivíduo, nas leis...?

Juiz Geraldo Fidelis -
A falha está no estado não construir essas colônias penais. A tornozeleira é um paliativo apenas, mas não é para impedir o crime, mas é melhor ficar com tornozeleira do que sem nada. Até setembro de 2014 não tinha tornozeleira e o pessoal saía para a rua sem nada. Agora dá para ter um controle mínimo. Se a pessoa não está obedecendo, se recolhendo na hora certa, ou pratica um novo crime, ele volta para o regime fechado. O problema é quem está na tornozeleira tinha que estar na colônia, mas o estado não investiu nessa área. Muitos anos atrás o estado tinha a colônia de Palmeiras, na região da Agrovila, uma região linda. Lá ainda tem umas 15 pessoas que estão no regime fechado, de índole rural, mas não recebe muito.

Leiagora - Em relação ao presídio, como é feita a divisão dos faccionados? 

Juiz Geraldo Fidelis -
Olha, quando a pessoa, junto ao sistema penitenciário, se declara de uma facção minoritária aqui em Mato Grosso, ela tem uma penitenciária separada para ficar, para não ser constrangida pela maior facção, vamos dizer assim. É para evitar mortes também. Desde que houve essa separação reduziram drasticamente os casos de mortes nas penitenciárias. Existe essa preocupação para evitar qualquer tipo de rusga dentro dos presídios. E essa decisão é feita totalmente pelo Executivo, a Administração Penitenciária. Eles que têm a inteligência para isso, e eu nem posso intervir nisso. Eles olham também o perfil da pessoa e o crime. Lá na PCE, por exemplo, não vai homem que bate em mulher ou que comete crime sexual. Então, a Inteligência do Sistema Penitenciário que faz essa separação, porque os presos da PCE não aceitam esses crimes. Eles vão para o Centro de Ressocialização de Cuiabá, o CRC.

Leiagora - E mudando um pouco a vertente do assunto, doutor, eu gostaria da sua opinião a respeito de um projeto apresentado na Câmara dos Deputados por um parlamentar mato-grossense, em 2019, no qual ele propôs alteração na legislação penal para tornar corrupção um crime de competência do tribunal do júri. O que o senhor acha disso?

Juiz Geraldo Fidelis - 
Olha, isso tem que mudar a legislação federal, né. Mas veja bem, hoje em dia, as pessoas que cometem crime dolosos contra a vida são os que são pronunciados ao Tribunal do Júri. Se acrescentar os casos de corrupção… é uma questão complexa. Os casos de corrupção são enormes, os processos são volumosos. Mas o júri é rápido, de poucas horas. Se colocar esse caso de corrupção, o júri vai demorar 5 dias. Não é prático. Com todo respeito ao autor do projeto, mas ele não conhece a rotina do Júri. A intenção é magnífica, mas praticidade… acho difícil. Até porque quem está no tribunal do Júri são populares. Tem que ser o padeiro, pedreiro, professor, bancário, advogado, jornalista. Eu sou muito a favor do instituto do Tribunal do Júri, é uma mescla da sociedade, ele é muito democrático. Mas para essa análise da corrupção tem que ter um conhecimento diferenciado. Até para folhear o processo. Difícil fazer isso aí.
 
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