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21/02/2021 às 13:00 | Atualizada: 21/02/2021 às 15:03

A cultura do cancelamento e suas consequências: psicóloga faz alerta para a violência desta política

Luzia Araújo

O Big Brother Brasil deste ano nem bem começou e já provocou inúmeros debates dentro e fora da casa. Entre os assuntos discutidos, a “cultura do cancelamento” teve a maior repercussão entre os confinados e quem acompanha a edição aqui fora, mas qual o efeito disso na sociedade? Quais as consequências? E como agir diante do erro do outro? 

São muito os questionamentos, inclusive, 
o que é a “Cultura do Cancelamento” e como ela pode prejudicar a vida de uma pessoa. Por isso, o Leiagora conversou a psicóloga, mestre em psicologia social e doutora em cultura contemporânea, Morgana Moura, para falar sobre o assunto mais comentado do momento. 

O fenômeno, até então conhecido apenas no mundo digital, ganhou notoriedade logo na primeira semana de confinamento, chegando a ser tema de uma atividade denominada “Jogo da Discórdia”, na qual os brothers e sisters tinham que apontar quem era o “cancelador” e o “cancelado” do programa. Paralelo às tretas da casa, alguns confinados já estão sofrendo com as consequências do “cancelamento” fora da casa, sem saber.

Um exemplo disso é a rapper Karol Conká, que perdeu seguidores e alguns contratos devido após se comportar jsutamente como a canceladora do program, principalmente, maltratando o ator Lucas Penteado, que acabou não suportando e pediu para sair do programa após protagonizar o primeiro beijo gay da história do BBB e sentir a pressão, não apenas da cantora, mas também da Lumena. 

Leiagora - O que é a cultura do cancelamento? Ela é um fenômeno novo ou já existia antes do programa? 

Morgana Moura – Na verdade, o cancelamento social sempre existiu. Conhecíamos como banimento social ou exclusão da sociedade. Isso acontecia desde as civilizações antigas, quando algumas pessoas recebiam como punição o processo de ser banido da sua comunidade ou sociedade. Então, o que temos hoje acredito que seja uma releitura, considerando que as nossas relações são dinâmicas e acabou se transformando, já que estamos em uma era digitalizada. Então, o processo de excluir alguém da interação social ou dá convivência social de forma saudável sempre existiu, desde que começamos a nos organizar em sociedade, mas a forma como se dá hoje é mais voltada para as dinâmicas digitais. 


Leiagora - O que estamos vendo no BBB reflete o que acontece na sociedade? Somos cancelados e canceladores na vida real?

Morgana Moura – Com certeza. Cotidianamente,  fazemos as nossas escolhas e julgamentos das nossas interações e acabamos reverberando isso também para as pessoas que são públicas. Acredito que, além de um propósito de cancelamento, algo que não é mencionado nessa discussão é como ele é feito e qual a sua intensidade. Porque, se pegarmos exemplos de grandes empresas, como Carrefour ou Extra, que tiveram episódios racistas a ponto de pessoas irem a óbito dentro do supermercado, houve um processo de posicionamento em defesa dessas vidas, no sentido de não consumir mais aquela empresa, ou seja, cancelar aquela empresa pelo episódio que aconteceu. Mas, acabamos vendo que esse movimento acaba sendo transportado com a mesma intensidade em episódios que não tem o mesmo dano social. Então, acabamos fazendo essa transposição, justamente, porque não nos questionamos  qual o efeito desse processo de escolha e julgamento. 


Leiagora - Qual o papel das redes sociais na cultura do cancelamento? Ela acaba sendo mais potencializada no mundo digital onde as pessoas acham que estão protegidas pelo anonimato e podem falar o que bem entendem?

Morgana Moura – As redes sociais têm uma função muito boa de trazer publicidade a esses acontecimentos e conseguirmos criar formas de resistência e defesa. Por exemplo, o que aconteceu com a modelo Mari Ferrer, que passou por um estupro. O processo que a internet fez de cancelar o estuprador ou de ataque ao estuprador, foi no sentido de defesa de todas as mulheres que passam por essa situação e até uma forma de escancarar como o Judiciário lida com situações de violência cotidianamente, no caso do julgamento que aconteceu. Mas, na mesma medida que a internet tem essa potência de criar grandes redes de mobilização e foco de força e potência, ela também opera como uma forma de mascararmos aqueles que lançam mão de um discurso de ódio como estratégia de cancelar. Por exemplo, no caso da Karol Conká e da Lumena, conseguimos encontrar facilmente na internet pessoas as xingando com conotações sexuais, como forma de agredi-las, sendo que isso não diz respeito ao ato que elas estão praticando em si ou praticaram. Então, o principal é como isso tem sido feito, porque acabamos sendo também agressor e algoz nesse processo. 


Leiagora - O cancelamento acaba dando mais visibilidade ao discurso de ódio na rede social e na sociedade?

Morgana Moura – Da forma como as pessoas operam o cancelamento e a intensidade dele, o discurso do ódio é uma potente ferramenta de aniquilar vidas. No caso, nas referências que eu trabalho, entendemos que as pessoas tiram a própria vida pela vivência com a violência que estão passando. Algo que foi questionado quando o Lucas pediu para sair foi se a alternativa máxima que ele tinha lá era sair,  imagina na vida real, para onde ele iria sair? Na casa os participantes tem uma convivência direta, onde eles não tem por onde escapar dos seus algozes, mas no nosso dia a dia, às vezes também não temos para onde ir e as pessoas acabam se suicidando por questão de extrema violência no processo de cancelamento. É muito perigoso a forma como agimos na avaliação das ações dos outros, seja elas legais ou ilegais. O que vivenciamos das situações da casa foram não só de questões morais, mas, principalmente, de crime racial e de LGBTfobia. Então, a forma como operamos o cancelamento que deveria ser mais questionado do que o próprio cancelamento em si. 


Leiagora - Como agir diante de uma situação que não apoiamos ou não concordamos para não ocorrer dano a vida de uma pessoa? 

Morgana Moura – Quando a pessoa passa por um processo de cancelamento, entende-se que ela praticou algo “ruim”. Então, devemos reentender e fazer o mesmo movimento dos povos originários. Temos uma lógica muito punitiva. Nossa sociedade ocidental e os povos originários fazem o inverso, que é o acolhimento. O acolhimento não significa deixar de reconhecer a maldade que o outro fez, mas a possibilidade para que a pessoa reconheça o que fez e repare o dano causado. E o processo não é feito da noite para o dia. Ele leva tempo. O que não temos hábito na nossa sociedade, é fazer o resgate comunitário de acolhimento, para que as pessoas possam reconhecer o que fizeram e, consequentemente, reparar os danos causados, desses danos cotidianos ou até quando é praticado um caso de crime. 


Leiagora - Qual a diferencia entre cultura do cancelamento e bullying? Eles podem ser confundidos?

Morgana Moura – Entendo que não existe diferença entre a cultura de cancelamento e o bulluying, porque a intensidade que vai moldar o que é um e o que é o outro. O ato de bulinar, atacar ou agredir é uma das ferramentas utilizadas no processo de cancelamento, mas também a exclusão, dependendo da forma como ela é operada, também pode ser entendida como um bullying. De uma maneira mais precisa, o bullying quanto ataque é uma ferramenta do cancelamento e isso é perigoso, porque passamos a atacá-la de maneira a arruinar a saúde mental. 


Leiagora -  Até que ponto o cancelamento pode destruir a vida de uma pessoa julgada?

Morgana Moura – Pode destruir até o aniquilamento da vida. Se as pessoas não fazem crítica a forma como estão lidando com a conduta que foi nociva do outro e ficam só no ataque e punição, essa mente chega uma hora que não aguenta e os danos não são apenas materiais, financeiros ou de perder seguidores, mas podem ser físicos.


Leiagora - Como as vítimas podem seguir em frente diante de tantas agressões e ameaças?  

Morgana Moura – É reconhecer se fez algo ruim ou nocivo e se colocar em um processo de entender e aprender. Mas, ela precisa estar disposta a aprender e depois fazer a reparação de dano. Por exemplo, a cantora Marilia Mendonça: ela fez uma fala totalmente transfobica em uma das lives e foi muito criticada por isso. Na live seguinte, ela reconheceu publicamente o erro e disse que daria mais visibilidade as essas questões nas produções dela. Então ela está fazendo um processo de reparar dano, que é muito importante, porque o ato que ela praticou também causou danos em outras pessoas.

O mesmo não acontece com grandes empresas. Elas não fazem esse movimento, de reparar os danos. Os supermercados que eu citei não tem uma política de trabalhar as questões raciais no ambiente de trabalho. Se eles implantassem capacitações sobre questões raciais, formas de acolher e abordar sem ser agressivo, talvez seria uma forma de reparação. É importante lembrar que todos nós estamos sujeitos a serem cancelados e serem caceladores. Ninguém é o alecrim dourado. Além disso devemos nos questionar como estamos acompanhando os nossos pensamentos, falas e ideias e se elas estão potencializando vidas ou não.
 
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