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24/03/2021 às 08:55 | Atualizada: 25/03/2021 às 11:55

Aumento de internet, mensagens 24h, preocupação e novas descobertas: o 2020 dos professores

Camilla Zeni

“Professora, pelo amor de Deus, me ajuda. Eu tô vendo que meu filho está ficando para trás”. O pedido desesperado de um pai que não conseguiu dar um celular para o filho acompanhar as aulas marcou e levou aos prantos a professora Cristiane Gonzalez, que há mais de 30 anos dá aula de História na rede pública de ensino em Cuiabá. Nesta pandemia da covid-19, ela viu não um, mas vários casos semelhantes ao da família deste aluno. 

Em razão do agravamento da pandemia, o estado de Mato Grosso suspendeu as atividades escolares em 23 de março de 2020. Hoje, um ano depois, os alunos da rede pública ainda não retornaram às salas de aula. Nesse meio tempo, diversas foram as formas de ensino trabalhadas para tentar salvar um ano que, segundo o secretário de Estado de Educação, Alan Porto, foi uma “tragédia” para a educação. Dentre elas, o ensino online. 

“Aquele pai me ligou desesperado. Estava numa angústia tão grande que até chorou no telefone. Falou: ‘professora, pelo amor de Deus, me ajuda. Eu tô vendo e parece que meu filho está ficando para trás. Eu tô com o telefone aqui, preciso dele pra trabalhar e vejo a tarde inteira professores mandando atividade, mas meu filho só pode fazer quando eu chegar, à noite”, contou a professora à reportagem do Leiagora

A realidade do aluno de Cristiane, no bairro Parque Cuiabá, não é diferente da que experimentaram alguns dos alunos do professor de Educação Física Flávio Mattos, do outro lado da cidade, no bairro CPA 4. De acordo com o educador, cena comum era um pai ou uma mãe informar que o filho não poderia assistir aula em razão da ausência de um aparelho eletrônico. Para ele, a situação contribuiu para o aumento de casos de evasão escolar. 

“Os alunos começaram a evadir naturalmente, principalmente porque muitos pais não conseguem ceder o celular porque precisam trabalhar ou porque tinham um aparelho telefônico para dois filhos ou mais utilizarem”, avaliou o professor. 

Na escola da coordenadora Cristina Valdete, na região do bairro Parque do Lago, em Várzea Grande, a conectividade dos alunos também foi baixa. Por lá, segundo ela, os estudantes vêm de famílias muito carentes que, muitas vezes, sequer têm acesso à internet. 

“Quando voltamos em 2020 começamos com atendimento por Whatsapp. Nossa comunidade é carente, e os alunos não têm uma conectividade boa para participar de aulas por aplicativos. Então, o único recurso que a gente tinha para entrar em contato com os alunos de forma online era Whatsapp. Ainda assim, não teve adesão nem de 50% dos estudantes”, relatou.



A coordenadora Cristina Valdete ficou das 8h às 19h imprimindo apostilas na escola

Apostilas impressas

Na rede estadual de ensino, as escolas adotaram diversos procedimentos, na tentativa de se adequar à realidade que batia à porta. De acordo com a coordenadora Cristina Valdete, em sua escola, na região do bairro Parque do Lago, em Várzea Grande, a equipe pedagógica passou mais de dois meses tentando localizar os pais dos alunos, para pedir que fossem buscar uma apostila impressa para o início das aulas. 

Naquela época, para que os estudantes não ficassem com as aulas em atraso, a Secretaria de Estado de Educação (Seduc) disponibilizou um material para que as unidades escolares imprimissem para seus alunos. Os exercícios deveriam ser respondidos e entregues de volta nas escolas. Contudo, segundo ela, a adesão dos alunos também foi baixa. 

Na escola de Cristiane, porém, as apostilas da Seduc foram usadas apenas no mês de agosto. Já a partir de setembro coube aos professores o trabalho extra de elaborar uma apostila para ser usada pelos alunos que não tinham acesso à internet. “Eles tinham a opção de assistir aula online e entregar a atividade, ou entregar impresso na escola depois. Muitos preferiam entregar depois”, contou a professora.

Novas tecnologia, novos celulares, nova internet

A inclusão de novas tecnologias na educação se deu com alguns tropeços. Enquanto as crianças e pais enfrentavam dificuldades na disponibilização de um aparelho para estudar, os professores se ajudavam a conseguir usar os sistemas disponíveis. “Para os professores mais velhos foi muito mais difícil”, lembrou Cristiane, que também contou com a ajuda dos filhos em diversos momentos. 

Além de não terem contato no dia-a-dia com as tecnologias antes da pandemia, os professores tiveram que lidar com o sistema Microsoft Teams, adotado pela Seduc em 2020. “Era muito pesado”, “travava demais”, “horrível de usar” foram alguns dos comentários ouvidos pela reportagem. 

No entanto, a modalidade de ensino em casa também trouxe outros impactos para os professores: eles tiveram que aumentar seus pacotes de internet, para conseguir usar o sistema da Seduc e dar as aulas. Em outros casos, chegaram a comprar outro aparelho celular, porque o que usavam não atendia à nova necessidade. A conta de energia também mudou.

“Com esse calor de Cuiabá, usando o computador o dia inteiro, ele falhava, esquentava demais e você não sabia pra onde que ia. Aí tinha que pegar o notebook e ir ligar o ar condicionado no quarto. A luz aqui foi para R$ 800. Antes eu pagava R$ 300 e pouco de energia”, contou a professora, ainda indignada.



A professora Cristiane teve que adaptar um espaço em casa para dar aulas online

Já o professor Flávio cita que a convergência para as aulas online trouxe outro inconveniente: as mensagens 24 horas. De acordo com o educador, os questionamentos de alunos e pais chegam a todo instante, independentemente do horário ou dia da semana. E nem todos compreendem que o professor nem sempre está conectado fora do horário de aula. 

“O trabalho dobra, sem dúvida. São alunos enviando trabalhos e dúvidas fora do horário o tempo todo. Às vezes pais querendo explicações do professor sobre coisas que competem à Secretaria, e eles não entendem que não temos como responder. E, em geral, se não respondemos, mesmo fora do horário, os insultos geralmente vinham, incompreensão, ligações insistentes, às vezes 11h da noite, também vinha. Foi despertando em mim a vontade de estar cada vez mais longe do celular, porque eu sabia que na hora que eu pegasse o aparelho, ia ter mensagem de aluno, mensagem de pai…”, relatou Flávio Mattos.

“Os pais e os alunos entram em contato com a gente na hora que eles têm disponibilidade. Então o horário que entram em contato a gente atende, por isso sempre passa da jornada de trabalho. A gente acaba dormindo com o celular na mão, porque as pessoas gostam de ser atendidas, né, então, para evitar reclamação...”, explicou Cristina, que também vivenciou a situação.

Escola particular: universo (muito) paralelo?


Se engana quem acredita que os professores da rede particular de ensino vivem em um universo paralelo. Embora não tivessem passado por algumas das dificuldades dos professores da rede pública, os relatos sobre o momento de 2020 se assemelharam em muitos pontos, desde o acesso às tecnologias à falta de motivação dos alunos. 

Nas escolas onde a professora de Redação Kelina Souza dá aulas, por exemplo, a adaptação inicial também não foi fácil. Segundo a educadora, os colegas também tiveram dificuldades para acessarem os aplicativos indicados, inicialmente. No entanto, conforme o tempo, conseguiram se ajustar. 

“No começo da pandemia foi muito difícil para todo mundo. Difícil para os alunos acompanharem, mesmo com seus privilégios de internet, computador, alguns até com escritório em casa. Para o professor, então, foi uma mudança radical. Tivemos que aumentar a internet, comprar material para dar aula em casa com qualidade, e havia a preocupação se eles conseguiriam entender o que a gente queria passar nesse nosso formato. Foi um momento de muita incerteza”, lembrou a professora.


A professora Kelina precisou se adaptar e usar o que tinha em casa para as aulas online

Na rede privada, o tempo de hiatus entre as aulas foi pouco. Acordo firmado entre as escolas particulares indicou para o adiantamento das férias escolares no final de março, pelo período de duas a três semanas. “Acreditávamos que depois disso já voltaríamos. Quando percebemos que não era bem assim, começamos a pensar novas estratégias”, contou a professora. 

Com aulas virtuais desde abril, os professores contaram com a colaboração dos alunos para que o ensino à distância pudesse dar certo. Na escola de Kelina, por exemplo, um grupo de estudantes chegou a assistir algumas das aulas com as câmeras ligadas, como um ato de empatia com os professores, já que a medida não era obrigatória. 

“O professor gosta de estar com o aluno na sala de aula, e durante a pandemia a gente não tinha o aluno. Então, a sensação era que falávamos com uma máquina. Por isso, quando eles interagiam, abriam a câmera, comentavam no chat, dava um gás a mais”, avaliou. 

O mesmo movimento aconteceu na escola da professora Jaqueline Arruda, que dá aula de matemática. “Os alunos estavam preocupados. Como iriam aprender química, matemática, matérias de exatas à distância? Seria muito pesado. Mas eles entenderam que não tínhamos o que fazer, então precisávamos nos ajudar. Por isso, no início, eles se engajavam. Havia até uma empolgação pelas aulas online, que eram uma coisa diferente”, lembrou.

No entanto, conforme Jaqueline, aos poucos a empolgação foi acabando. Os alunos reclamavam de exaustão pelo tempo passado na frente do computador e da quantidade de atividades cobradas. Segundo ela, também havia uma diferença nítida no comportamento de alguns alunos do 3º ano do Ensino Médio e dos demais. 

“Alguns dos alunos do terceiro ano já têm costume de estudar online, porque almejam vagas em universidades e cursos bastante concorridos no Enem. Deu para notar bastante diferença no comportamento desses, que assistiam a todas as aulas e faziam atividades com empenho, daqueles que só queriam terminar o ano”, contou a professora. 

Kelina também notou a diferença no comportamento dos alunos, mas avaliou que a situação é a mesma do ensino presencial. “Alguns já não tinham disciplina na sala de aula e continuaram sem disciplina no online. É normal”, comentou.

Jaqueline acrescentou que, no entanto, para muitos estudantes, ainda que sejam da rede particular, o ensino em casa contou com diversos empecilhos. “Sempre tinha aluno dizendo que teria que sair da aula mais cedo para fazer uma comida, limpar a casa, ou algum favor para os pais. Teve aluno que, no início, precisou dividir até o computador com um irmão, então houve uma série de dificuldades em razão da mudança de sistema”. Essa realidade também foi relatada pelos professores da rede pública e por Kelina, na rede particular.

As descobertas e o 2021

Fosse no ensino público ou privado, os professores precisaram descobrir novas formas de atuação. Isso porque entendiam que uma aula monótona não ajudaria os alunos a se motivarem. Além disso, também precisaram driblar suas próprias dificuldades e angústias, e cuidar da saúde mental, que ficou fragilizada na pandemia.

“Havia uma preocupação muito grande se os alunos estavam entendendo o que queríamos passar. Então também tínhamos que ter mecanismos para avaliar as aulas e a participação dos alunos. Como temos autonomia em relação ao conteúdo, eu fazia algumas aulas diferentes, com dinâmicas que eles pudessem fazer em casa e trazer o resultado na próxima aula”, contou Jaqueline.

O professor Flávio, por sua vez, adotou um método de avaliação próprio. Ao mesmo tempo em que tentou criar laços com seus alunos, com certa intimidade, estabeleceu limites e pediu a ajuda dos alunos para que as aulas fluíssem. 

"Fomos experimentando ao longo dos três primeiros meses diversas estratégias e foi a partir disso que elaborei o plano dos meses seguintes. Os alunos preferiram texto, imagem, áudio e vídeo, então em cada aula eu intercalo os elementos. Também fazemos constantes avaliações para ver se eles estão entendendo. Quando eu percebo que os alunos estão se perdendo, eu paro a aula e faço uma avaliação do professor com eles. Com isso, fui ganhando a confiança deles", explicou. 

Já a professora Cristiane aproveitou que sua disciplina é história e usou filmes e documentários para enriquecer a aula. 

Para 2021, os professores divergem. Enquanto Cristiane acredita que o ensino será mais fácil, uma vez que os professores já sabem como trabalhar na pandemia, Kelina, que já experimenta o ensino híbrido em suas escolas, vê mais dificuldades. “Temos dois públicos distintos ao mesmo tempo. Ficou ainda mais difícil lidar com tudo isso. É uma nova avaliação. Temos que pensar um novo formato”, avaliou. 

Em Cuiabá, o ensino híbrido começou nas escolas particulares no início do mês, atendendo a um pedido das escolas e dos pais. Nos estabelecimentos, devem ser mantidas as normas de biossegurança, bem como a redução do número de alunos em sala. 

Já para as escolas públicas, ainda não há previsão para o início do ensino híbrido. Uma medida deverá ser anunciada pela Seduc no fim de março.
 
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