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28/03/2021 às 09:38

Com a covid-19 em sua pior fase, médica critica tratamento precoce e falta de isolamento social

Camilla Zeni

Mais de 1,4 mil moradores de Mato Grosso perderam suas vidas em razão de complicações provocadas pela covid-19 apenas neste mês de março. O número representa quase 20% do total de mortes registradas em um ano inteiro de pandemia. Agora, aliada à gravidade da doença está a falta de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), essencial para a recuperação dos casos mais complexos da covid-19. 

Diante deste cenário, o Leiagora conversou com a infectologista Márcia Hueb, professora de infectologia na UFMT e do Hospital Universitário Júlio Muller, que vem monitorando a pandemia desde antes do primeiro caso registrado em Mato Grosso. A médica avaliou que a falta de medidas rígidas para evitar a circulação da população contribuiu para o agravamento do cenário.

Ainda ponderou que cabe aos gestores públicos a atenção para que não haja risco de desabastecimento de oxigênio nos hospitais, uma vez que o insumo é vital para os casos mais graves da doença. Para a médica, a falta de ação em relação ao desabastecimento de oxigênio é considerada desumana. "É ver uma pessoa se afogando e não fazer nada", disse.

Márcia Hueb também falou sobre as novas variantes encontradas mundo afora e sobre o chamado tratamento precoce, que, mesmo sem comprovação científica, ainda vem mobilizando parte da população.

Abaixo, confira a entrevista:

Leiagora - A covid apresenta, neste mês de março, o seu pior cenário em MT. Há alguma explicação sobre por que agora o vírus está sendo mais agressivo? Tem relação com novas variantes ou ainda estamos enfrentando o mesmo vírus do ano passado? É uma questão de falta de isolamento social?

Dra. Márcia Hueb -
A principal explicação é que pouco foi feito para evitarmos a situação atual de maior número de casos e mortes. Temos o pior índice de isolamento social do país e esse é o fator principal para o aumento na transmissão. Temos variantes mais adaptadas à transmissão, o que faz os casos crescerem mais ainda. Mas as medidas rígidas de isolamento servem para reduzir a transmissão do vírus, seja ou não uma variante.

Leiagora - Sobre as variantes, já sabemos quantas circulam por Mato Grosso? E as nossas vacinas são capazes de enfrentá-las? 

Dra. Márcia Hueb -
Sabemos que temos variantes em MT. A variante P1 ou de Manaus é uma realidade aqui e no Brasil como um todo. As vacinas que usamos têm se mostrado eficazes em prevenir doenças pelo vírus inicial e suas variantes, mas os estudos prosseguem. Até o momento, a variante da África do Sul é a que tem mais preocupado em relação à redução de resposta vacinal, mas essa não é a variante predominante entre nós. Estudos seguem e as respostas virão.

Leiagora - Também vemos cada vez mais casos de reinfecção pela covid. Por que isso ocorre? E, em geral, a reinfecção vem mais agressiva?

Dra. Márcia Hueb -
A reinfecção depende da perda de resposta imunológica competente que havia sido obtida por doença ou vacina, ou por escape da vacina, que não protege em 100%. Ainda, por variações no vírus que fariam nossa defesa imune não reconhecer esse novo vírus como reconheceria o não-variante. Não sabemos quanto tempo dura a resposta imune por doença, nem por vacina, e só os estudos de acompanhamento ou observação vão nos dar essa resposta. A reinfecção é uma realidade e deveria fazer compreender que todos os cuidados devem continuar. Nada até o momento demonstra se a doença pode ser menos ou mais grave na reinfecção.

Leiagora - Por que cada vez mais jovens estão sendo atingidos pelo vírus de forma grave? 

Dra. Márcia Hueb -
Mais jovens estão acometidos. Então, vamos ver também jovens com doença grave. É uma questão de frequência da doença na população. Antes, o número total de doentes era muito menor e só víamos os mais frágeis acometidos por doença grave. Agora, com a doença disseminada por todos, começamos a ver também jovens e crianças nessa condição. E quanto mais avança o percentual de idosos protegidos por vacina, menos teremos os mais velhos hospitalizados por doença grave, o que demonstra a eficácia da vacina em seu objetivo de proteger da hospitalização e morte.

Leiagora - Falando em vacina, quem já teve covid-19 pode tomar vacina em quanto tempo? Há algum tipo de doença crônica que impede a pessoa de tomar vacina contra a covid-19?

Dra. Márcia Hueb -
  Um mês após contrair a doença já pode se vacinar. A princípio, todos podem ser vacinados. Pessoas com doenças crônicas graves devem procurar seu médico para orientá-las.

Leiagora - Ainda hoje ouvimos muito da população sobre tratamento precoce. Isso, de fato, ajuda, o famoso "kit covid"?. Quais seus riscos?

Dra. Márcia Hueb -
O tratamento precoce não ajuda e pode prejudicar de duas formas. Primeiro porque leva à falsa ideia de proteção, de estar livre de formas graves, o que pode fazer o doente demorar a procurar ajuda. Mais ainda se usar de forma profilática, porque não previne, mas faz a pessoa se expor mais, julgando estar protegida. E, segundo que, hoje, temos já descritas complicações por esses tais “kits-covid”, como arritmias cardíacas e hepatite medicamentosa, inclusive com indicação de transplante do fígado. É lastimável que ainda sejam largamente prescritos esses medicamentos que os bons estudos mostraram não funcionar e inclusive prejudicar.

Leiagora - Já houve casos de pacientes com inflamações gravíssimas no pulmão, a ponto de precisarem de um ECMO, que funciona como um pulmão artificial. Esse aparelho está em uso em Mato Grosso? O que leva a essa necessidade? 

Dra. Márcia Hueb
- Esses casos são vistos na rotina das UTI que atendem a covid. Esse aparelho pode ser disponibilizado em Cuiabá. Há casos de uso em pacientes críticos que não respondem às medidas habituais de controle do quadro respiratório. É mais uma das medidas de suporte avançado. 

Leiagora - Das sequelas da covid, quais têm sido mais recorrentes? E como tratá-las? É possível que fiquem para o resto da vida?

Dra. Márcia Hueb -
  Sequelas da covid também são parte de uma triste realidade. Muitos doentes, muitas mortes, mas também os que se recuperam, mas ficam com as marcas da doença. É um capítulo muito extenso e a cada dia se tem um aprendizado com o seguimento dos doentes. De forma bem sucinta, a fadiga pós-covid tem sido uma das queixas mais recorrentes, mas podemos ter cefaleias por períodos duradouros, distúrbios da memória, perdas de olfato e gustação que se prolongam, cansaço e taquicardia. O pós-covid é tema multidisciplinar, com alterações que vão da neurologia à pneumologia e cardiologia, entre vários outros.

Leiagora - Nessa semana, vivemos uma preocupação com a falta de oxigênio hospitalar, diante do aumento de casos de internação em UTIs em razão da covid. É uma corrida contra o tempo?

Dra. Márcia Hueb -
O oxigênio é parte do tratamento do paciente que precisa de hospitalização, utilizado em cateter, máscara ou aparelhos para ventilação artificial. A demanda de O2 é muito alta por termos muitos pacientes internados hoje por covid. O suprimento necessário ultrapassa qualquer outra época conhecida e é esperado que vários esforços tenham que ser concentrados para que não haja falta. Não ofertar oxigênio a quem precisa é desumano e impensável, é como ver uma pessoa se afogando e não fazer nada. Todos os esforços devem estar voltados para que o suprimento atinja o necessário, porque a coordenação que deveria ser da União, não vem ocorrendo.

Leiagora - Falando em UTIs, o secretário de Saúde, Gilberto Figueiredo, afirma que o Estado pode abrir quantas unidades forem necessárias, mas que, ainda assim, não serão suficientes, já que a população ainda não se conscientiza das medidas mais importantes. A senhora concorda?

Dra. Márcia Hueb -
Concordo integralmente com o secretário Gilberto. Aumentar leitos não reduz a disseminação da infecção na população. O que reduz é o isolamento.
 
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