Cuiabá, domingo, 28/04/2024
17:46:40
informe o texto

Artigos / Colunas / Rosana Leite Antunes de Barros

13/02/2023 às 14:05

As muitas Carolinas

Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe solo, uma das primeiras escritoras negras do Brasil, cantora, compositora, poeta, viveu parte da sua vida na extinta Favela do Canindé, em São Paulo. Nasceu em Sacramento/MG, no dia 14 de março de 1.914, e faleceu em 13 de fevereiro de 1.977, em São Paulo.
 
Se sagrou como escritora, ao narrar a sua vivência diária como favelada. Contou tudo, dia a dia, para além do esperado e sem cortes, relatando o making of detalhado. A sua principal obra, “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, disse muito do que se queria, e por alguém que apenas contou a própria realidade. Foi publicado em 1960, e, em um ano alcançou a marca de 100 mil cópias vendidas. Desde então, a vida simples da autora mudou significativamente. Seu livro descreveu realidades que não eram externadas, fazendo com que se tornasse um reality, como os acompanhados com sucesso na atualidade. A curiosidade em saber como as pessoas se portam na vida cotidiana é motivo de especulações mundanas. E foi justamente esse o motivo do sucesso do livro. A autora, na sua cidade natal, viveu, juntamente com a genitora, a falsa acusação de ter cometido um roubo, que levou as duas a estarem presas, até que se descortinou que nada havia acontecido, quando conseguiram a liberdade. Em razão do lamentável fato, preferiu se mudar para São Paulo, a fim de construir uma nova vida. É dela: “O negro só é livre quando morre.”
 
Com pouca instrução, estudou apenas até o segundo ano do ensino fundamental, trouxe histórias de muita luta, superação e sofrimento que viveu e, ainda, testemunhou sobre fatos que aconteciam com as famílias que conviviam na favela. Carolina teve dois filhos e uma filha, que sobreviveram à fome junto a ela. Ressalta que fez questão de criar e educar os seus descendentes sozinha, como mãe solo, para que não houvessem interferências a lhe causar dissabores típicos de uniões estáveis e casamentos. Trabalhou como empregada doméstica na casa do conhecido médico Dr. Zerbini, quando chegou em São Paulo, onde, nos momentos de folga, desfrutava da leitura na imensa biblioteca da casa. Todavia, quando ficou grávida não pode mais trabalhar, se tornando catadora de recicláveis.  
 
Para que o seu diário fosse escrito, e traduzido posterirormente para 14 idiomas e conhecido por 40 países aproximadamente, se utilizava de papeis que encontrava nas ruas. Contou sobre o Brasil do século XX, onde os direitos humanos ainda estavam no ‘casulo’. As borboletas que surgiram, primordialmente as mulheres negras, em muito se deve a ela. Nas obras de Carolina de Jesus não há preocupação gramatical ou com a linguagem culta, trazendo o cotidiano periférico e experiências dela e de outras pessoas que com ela conviveu. 
 
A poeta e compositora apresenta muito fielmente a face de muitas mulheres brasileiras, máxime, daquelas que buscam amparo na Defensoria Pública. São muitas Carolinas que preferem não buscar por pensão alimentícia, para que não exponham seus filhos e filhas; outras, preferem sair de casa sem lavrar boletins de ocorrência, mesmo sofrendo violência; outras, ao terem filhos e filhas, preferem viver como mães solo, para que seus rebentos não sofram qualquer situação. E muitas Carolinas, como Carolina de Jesus, fazem essas opções para que a independência delas não seja ameaçada. Todavia, apesar desse ser o entendimento da compositora, os direitos humanos das mulheres existem para serem cumpridos e as amparar.
 
Foi o jornalista Audálio Dantas quem apresentou a escritora ao mundo, inclusive, dizendo sobre a fome irritante que percebeu e se condoeu com a leitura da escrita trágica. Ela, Carolina de Jesus, mostrou que é possível sim, ainda no século XX, trazer memórias vivas, que se perfazem em testemunho e história, como literatura. Ela exerceu a resistência, através do crédito nas palavras, e reconheceu o poder da autodeclaração: “Não queixas suas aflições/Aos que vivem em ricas vivendas/ Não lhe darão atenções/ Sofrimento, para eles, são lendas.”
 
Somos Carolinas!

Rosana Leite Antunes de Barros

Rosana Leite Antunes de Barros
Rosana Leite Antunes de Barros é defensora pública estadual.
ver artigos
 
Sitevip Internet