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17/09/2023 às 14:05

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Pesquisadora avalia que casos isolados de violência sexual não devem macular religiões de matriz africana

Religiões como a Umbanda e o Candomblé já são frequentes alvos de preconceito

Luíza Vieira

No início deste mês, a Delegacia Especializada de Defesa da Mulher (DEDM) de Cuiabá prendeu um suposto "guia espiritual", de 49 anos, que teria abusado sexualmente de sete mulheres, entre elas uma menor de idade. Dias depois, ele obteve o direito à liberdade por meio de um habeas corpus, mas o caso segue em investigação. Em meio a este cenário, em que casos de supostos líderes espirituais investigados por possíveis crimes de violência sexual, o assunto se difundiu na mídia e repercute negativamente para religiões de matriz africana, que passam a sofrer ainda mais com a relativização da fé de seus fiéis.

Para saber mais sobre o assunto, o Leiagora teve um bate-papo com a professora de história pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Ana Carolina da Silva Borges que explicou que o preconceito quanto às religiões afro-brasileiras e indígenas são frequentes e atemporais. Quanto aos casos de abuso sexual, a discente e também umbandista alerta que esses se tratam de casos isolados e que não representam todos os terreiros. 

“Abuso sexual tem nas igrejas evangélicas. Tem também abusos sexuais no espiritismo, já vimos casos nessas circunstâncias. Quando são casos em religiões de matriz africana, indígena, parece que a coisa ganha uma dimensão maior. [...] Uma pessoa fez, está certo? Não está certo. Mas todas as outras casas não podem ser sacrificadas pelo erro de uma pessoa”, ponderou a professora.

Pós-doutora em história pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), especialista em correntes africanistas e atuante em grupos de pesquisa do coletivo negro, estudos sobre racismo e demais populações marginalizadas, a pesquisadora afirma que para além da colonização cruel, marcada pela imposição da religião cristã à população escravizada, tanto negra, como indígena, ainda no período colonial, as religiões de matriz africana sofrem ainda na atualidade com racismo espisteomológico e disputa entre as demais religiões.

“É importante falar um pouco é a dimensão científica. Porque as religiões de matriz africana, normalmente quando elas caem nos estudos científicos, muitas vezes, nem são colocadas como religiões, a antropologia delimita a religião muito mais dentro de uma perspectiva escriturária e os rituais, práticas de tradição oral, normalmente elas são colocadas como seitas. E tidas como menores [...] acaba colocando a história, a religião, as práticas, da Europa e desse mundo ocidentalizado como se eles fossem universais e maiores”, relata a professora.

“Aí também a gente tem outra instância que são as disputas religiosas. Isso é histórico também. Se a gente pegar, por exemplo, todo o nosso processo de colonização, junto com ela veio o cristianismo, veio toda uma propagação de práticas religiosas, de valores, que foram diminuindo outras práticas religiosas. [...] Práticas que eram muitas vezes construídas pelos indígenas, pelas etnias africanas que estavam aqui deixaram não só de serem praticadas, como também elas foram perseguidas, mulheres e homens queimaram como se praticassem bruxaria”, detalhou.

A religião de príncipes e princesas de outra época, do batuque que originou o samba, de respeito aos ancestrais, conexão com a fauna e flora em ritos sagrados e de equiparidade de gênero entre os deuses é também, segundo a professora batuqueira, vítima de preconceito constante.

“Pessoas que praticam religiões de matriz africana, afro-brasileira e indígena, elas têm que ter esse cuidado como se fosse um segredo, como se fossem práticas que elas passassem por um processo de endemonização e de perseguição tão grande, que você mostrar que você é adepto, você é uma pessoa que deve moralmente ser questionada”, e ainda completa:

“A gente fazendo os ensaios do Maracatu, já fomos perseguidos com cabo de ferro, já chamamos a polícia e a polícia disse que aquilo não era nada, já pararam festa com polícia e Corpo de Bombeiros e não pediram só para baixar o som, mas para não abrir mais, receberam multas [...] Casas são arrombadas, imagens jogadas no chão, casas que já foram incendiadas, mãe de santo que já foi ameaçada de morte por pastor, por padre, por traficante evangélico”, relata a professora.

Com o objetivo de buscar de alguma forma diminuir o preconceito, ela explica que as religiões deveriam contar com reconhecimento, assim como padres, pastores, budas têm seu prestígio por serem considerados como figuras de autoridade em suas denominações religiosas, mães de santo e pais de santo também. Somado a isso, é necessário também que sejam criadas mais políticas públicas com a intenção de garantir mais visibilidade às religiões como a Umbanda e o Candomblé, assim esse medo do ‘desconhecido’ por pessoas leigas quanto à fé afro-brasileira pode ser superado e acima de tudo, quem sabe, tornar essas religiões mais respeitadas.

“Reconhecer essas lideranças, essas pessoas precisam comer, elas têm uma importância muito grande dentro da comunidade, precisa ter reconhecimento, precisa ter editais de premiação. Você tem que ter uma prefeitura que ajude em alguns eventos. A gente não tem aí na páscoa? A polícia para, tem um cronograma, festas de santo, de religião, tem tudo, disponibilizam banda. Por que que para essas religiões de matriz africana não tem o mesmo apoio das prefeituras e das secretarias de cultura?”, indaga.

Vale destacar que apesar de casos isolados que chocam a população em virtude de serem praticados por ‘líderes’ que se aproveitam da fragilidade de uma pessoa que busca por uma cura, seja no caso de João de Deus, no Espiritismo, aqui no Brasil anos atrás, ou  de investigações premiadas como a de jornalistas de Boston nos Estado Unidos que desarticularam uma rede de padres abusadores, caso que virou até filme. E até de pastores que frequentemente estão na mídia por casos parecidos. A fé da comunidade espírita, católica, evangélica, umbandista, budista, não tem nada a ver com isso. Abusadores, agressores e charlatões devem ser penalizados conforme determina a lei.

Todavia, provocar debates que inflamam a intolerância religiosa e tornam pejorativa uma das religiões, que mesmo em 2023 ainda sofre severas retaliações, também é crime.
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