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14/11/2023 às 19:12

CONDIÇÕES SUBUMANAS

Irmãos submetidos a trabalho análogo à escravidão por mais de 20 anos terão reparação na Justiça

As vítimas se alimentavam de arroz e soro de leite, além de dormirem em uma casa sem energia e sem banheiro, fazendo com que tomassem banho em uma represa

Leiagora

Irmãos submetidos a trabalho análogo à escravidão por mais de 20 anos terão reparação na Justiça

Foto: MPT-MT

Submetidos ao trabalho análogo à escravidão por mais de duas décadas em uma fazenda em Pontal do Araguaia (a 512 km de Cuiabá), os irmãos Marinalva Santos e Maurozã Santos obtiveram na Justiça a reparação financeira, por meio de Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso (MPT-MT) contra Odete Maria da Silva e seus filhos Lucimar Justino da Silva e Vera Lúcia Justina Ataíde, proprietários da Fazenda Canoeiro, localizada a cerca de 10 km do centro da cidade.

Após denúncia recebida em dezembro de 2019 pelo Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Pontal do Araguaia, Marinalva e Maurozã, 43 e 49 anos à época, foram encontrados trabalhando “descalços, com as roupas sujas e mau odor”. Ambos eram encarregados de serviços gerais, como a manutenção da horta, da represa e dos animais da propriedade.

As condições de trabalho e de vida no local eram tão precárias que, após a primeira visita, os profissionais do Cras retornaram à fazenda com o apoio da Polícia Militar, conduzindo os envolvidos à Delegacia de Polícia Federal, a fim de que prestassem depoimento.

Agressões e humilhações constantes

A vítima Marinalva relatou ter sofrido agressões contínuas, mencionando o uso de pedaços de pau e facão. Ela também teria sido vítima de abuso sexual. Em resposta à equipe do Cras, afirmou que “homens já fizeram coisas que ela não queria”.

Há ainda o relato de ao menos um episódio grave de violência contra Maurozã, que, motivado por fome extrema, “furtou” uma galinha. Em seguida, foi levado pelo filho da dona da fazenda para um brejo, onde apanhou pelo ocorrido. Ele acrescentou que, na ocasião, o agressor possuía uma arma de fogo.

No momento do resgate, ao serem questionados se tinham se alimentado naquele dia, as vítimas responderam que haviam comido arroz com soro de leite.

Contradições

Odete da Silva e sua filha Vera Lúcia entraram por diversas vezes em contradição quanto ao tempo em que os irmãos moraram na fazenda, valores recebidos e se os documentos pessoais de ambos estavam ou não em sua posse. Elas também negaram todas as acusações de maus tratos e condições degradantes de trabalho, afirmando que tinham uma relação de natureza familiar com os irmãos Santos.

Em maio de 2000, Marinalva passou a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), cujo cartão e senha ficavam sob a guarda dos exploradores. O valor era administrado pelo grupo familiar, sendo sonegado à Marinalva.

Irregularidades

As normas trabalhistas eram sistemáticas e desrespeitadas nas relações de trabalho na Fazenda Canoeiro. Os irmãos moravam em uma casa em péssimas condições de higiene, não recebiam roupas de corpo ou de cama, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), folga ou salário. Marinalva relata que já havia tentado sair da fazenda, mas retornou para a propriedade por não ter condições de se manter, complementando que as refeições realizadas eram raras e consistiam basicamente em “pão e bolo”.

De acordo com a equipe de assistência social, eles sequer sabiam “lidar” com dinheiro.

Nos depoimentos prestados ao MPT, Maurozã afirmou trabalhar todos os dias da semana, inclusive aos domingos. Como não havia banheiro no local em que ficavam alojados e não recebiam qualquer produto de higiene, era necessário ir “até o mato” para realizar as necessidades fisiológicas. O local não era limpo com frequência e as vítimas tomavam banho na represa da propriedade.

Uma terceira vítima

O filho de Marinalva, Rafael dos Santos, foi a terceira vítima de anos de submissão ao trabalho análogo ao de escravo. O resgate dele ocorreu pouco tempo depois, em janeiro de 2020. Da mesma forma que a mãe e o tio, ele trabalhava na Fazenda Canoeiro recebendo ordens de Odete, a quem chamava de “vó”. Em suas palavras, “desde sempre me lembrava de ter trabalhado naquela fazenda, inclusive aos domingos, quando levava dona Odete para a feira em Pontal, dirigindo a caminhonete, mesmo sem CNH, e sem ter tirado férias".


Ação

Em 2021, com base nas provas reunidas em inquérito policial e por servidores do Cras, o MPT ouviu os irmãos e as assistentes sociais envolvidas no resgate e ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) para pedir a condenação dos réus ao pagamento de indenizações por danos morais coletivos, danos materiais e danos morais individuais sofridos pelas vítimas, e para exigir o cumprimento de inúmeras obrigações, como o reconhecimento do vínculo de emprego rural de Maurozã e Marinalva (1998 a 2020) e de Rafael da Silva (2010 a 2020); a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); e o pagamento de todas as verbas trabalhistas e rescisórias devidas. O MPT também requereu o pagamento de indenização por danos materiais a Marinalva, em valor correspondente a todos os seus Benefícios de Prestação Continuada (BPC) sacados e apropriados indevidamente de maio de 2000 a novembro de 2020.

A Justiça do Trabalho chegou a conceder ao MPT uma liminar de tutela provisória de urgência de natureza cautelar, com o objetivo de indisponibilizar o patrimônio dos exploradores e resguardar os valores para a reparação devida. Em sede de tutela de direitos difusos e coletivos em sentido estrito, o Parquet pediu ao Juízo a declaração da submissão dos três trabalhadores à condição análoga à de escravo e a condenação da primeira e segunda exploradoras (Odete e Vera) em obrigações de fazer, não fazer e pagar, com eficácia em todo o estado de Mato Grosso, e fixação de multa.


Acordo

Após anos de tramitação na Justiça do Trabalho, as partes envolvidas chegaram a um acordo. A conciliação foi homologada em audiência realizada no dia 23 de outubro, na Vara do Trabalho de Barra do Garças.

Os exploradores deverão anotar na CTPS das vítimas o período de 08/11/1998 a 03/03/2020, no caso de Marinalva e Maurozã; e o período de 21/12/2010 a 11/02/2020, no caso de Rafael, na função de serviços gerais, com remuneração de um salário mínimo nacional. Além disso, foi expedido alvará para liberação do seguro-desemprego.

Os empregadores reconheceram a dispensa sem justa causa e se comprometeram a cumprir todas as obrigações de fazer e de não fazer descritas na petição inicial, sob pena de multa.

Para pagamento da indenização dos direitos trabalhistas e dos danos causados aos trabalhadores, os donos da fazenda concordaram em vender o equivalente a um alqueire de terras, no prazo de até 90 dias. Os termos da venda serão informados no processo, assim como a proposta de pagamento. Ao final dos 90 dias, caso não apareçam interessados na compra das terras, será realizada a penhora de um alqueire, o qual será vendido judicialmente. Do valor total obtido, 35% serão destinados à Marinalva, 35% a Maurozã e 15% a Rafael. Os outros 5% serão utilizados no pagamento dos recolhimentos previdenciários da contratualidade.

A título de danos morais coletivos, serão destinadas mensalmente, pelo período de 12 meses, duas cestas básicas para a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Isaías Pereira dos Santos, da cidade onde o resgate ocorreu. Para cada descumprimento, haverá aplicação de multa mensal, a ser revertida em favor da unidade escolar beneficiada.

Assistência e acolhimento

O Cras retirou os irmãos Santos da Fazenda Canoeiro, providenciando-lhes moradia e documentação. Também recuperou o cartão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de Marinalva e, dada a sua inaptidão financeira, administrou-o por um tempo em benefício dela. Maurozã foi inscrito no Programa Bolsa Família. Ambos residiram por algum tempo em um imóvel providenciado pela Prefeitura Municipal de Pontal do Araguaia, no programa de aluguel social da Secretaria Municipal de Assistência Social, e recebiam visitas domiciliares semanais da equipe multiprofissional do Cras.

Reencontro emocionante

Após o resgate, em 2019 e 2020, o Cras acolheu os irmãos, que foram mantidos  até 2021 pela Prefeitura de Pontal do Araguaia e acompanhados de perto por assistentes sociais, as vítimas foram encontradas por um irmão que vive em Goiás, do qual foram separados na infância.

 
Com informações do MPT-MT
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