Cuiabá, terça-feira, 21/05/2024
03:07:18
informe o texto

Notícias / Geral

30/09/2020 às 10:30

A realidade do Pantanal: fogo destrói pontes e comunidades temem isolamento

A tão esperada chuva pode não trazer o devido sossego aos pantaneiros atingidos pelos incêndios: não vai ter água suficiente para sair por barco, nem mais ponte pelo seco

Maria Clara Cabral

A realidade do Pantanal: fogo destrói pontes e comunidades temem isolamento

Ana Xavier, ribeirinha pantaneira em de Barão de Melgaço, lamenta os estragos das queimadas

Foto: Celso Meireles

Piuva é o nome dado pelos pantaneiros ao Ipê, árvore que, na primavera, colore o Pantanal com suas flores cor-de-rosa, amarelas, roxas ou brancas – muitas hoje secas ou queimadas pelos incêndios que já devastam 20% de todo o bioma. Piuva também é chamada uma das 14 principais comunidades ribeirinhas pantaneiras que vivem às margens do Rio Cuiabá, no município de Barão de Melgaço.

Foram três dias de imersão no Pantanal para poder dar voz aqueles que estão esquecidos, sob o risco de ficarem ilhados, acompanhando bem à distância toda a discussão sobre como enfrentar as queimadas na região. Enquanto o mundo olha para o fogo, eles enfrentaram de frente, passaram por momentos de tensão vendo inclusive as chamas próximas das suas casas. 

Chegamos a Piuva em 20 minutos de barco, partindo do porto de Barão (a 77 km da capital), na manhã de quarta-feira (23). Até lá, na estrada já era possível notar os sinais da extrema secura pela ausência dos lagos às margens. Naqueles dias, a fumaça havia dado uma trégua. Já no rio, entre uma margem verde e outra queimada, ainda há o medo de que o fogo retorne para queimar o que restou. Sua força foi capaz de atravessar às águas, relatam os moradores da cidade.

Mas ali também é possível chegar por terra; um "atalho" de cerca de 60 quilometros, muito usado pelos ribeirinhos para ir a Várzea Grande, tornam custos e tempo de deslocamento muito menores. No entanto, assim como as piuvas, a ponte que dá acesso à comunidade foi totalmente destruída pelo fogo há cerca de duas semanas.


Rio Cuiabá, em Barão de Melgaço. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

“Tudo é por aqui [ponte] na época da seca. De carro, cavalo, charrete, andando, de moto... É muito mais perto e o custo é menor. Sem a ponte, tem que pagar barco para atravessar o rio e sair de Barão”, conta dona Ana Xavier da Conceição. Barqueiros estimam, de Piuva, um custo de R$ 40 só para o trajeto de barco, que consome muito mais gasolina que um carro. Sem contar o combustível do veículo de Barão de Melgaço até Várzea Grande.

Assim, além dos prejuízos com animais mortos e machucados, que dão sustento à maioria das 54 famílias – economias de anos sendo queimadas, já que o boi criado ali é como um "banco de investimento" para os pequenos produtores – os custos com deslocamento são um dos impactos das queimadas que preocupam a população, principalmente após a chuva. “Precisamos do conserto dessa ponte para ontem. Se chover, ninguém mais vai sair”, afirma a ribeirinha.


Ponte que dá aceso à comunidade Piúva, em Barão de Melgaço. Imagem: Celso Meireles/Playagora

A ponte em questão está ali há décadas, chegou a cair e foi reconstruída há cerca de sete anos. Ela corta o córrego Água Limpa. “Olha a situação da água limpa”, ironizam.

Por isso, uma das demandas das comunidades é a construção de uma estrada de terra no local. “Já pensou essa estrada boa aqui? Não precisa ser asfaltada, precisa ser levantada e cascalhada”.

Conforme os moradores de Piuva, o governo do Estado de Mato Grosso chegou a planejar a construção dessa estrada, que seria chamada de “transpantaneirinha”. Secretários já teriam realizado visitas no local e suas equipes realizado estudos de viabilidade.


Queimadas na estrada de terra para comunidade Piúva, em Barão de Melgaço. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Conforme a Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, a via facilitaria o acesso a insumos e serviços que eles não encontram na região, atendendo os municípios de Barão de Melgaço, Santo Antônio do Leverger e Nossa Senhora do Livramento. Muitos ribeirinhos também se deslocam para visitar as famílias, cujas novas gerações evadem à beira do rio para buscar oportunidades nas cidades.


Estrada para o distrito de São Pedro de Joselândia, no Pantanal. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Esquecidos e isolados

Mais ao sul de Barão de Melgaço, descobriríamos que as dificuldades de acesso às comunidades pantaneiras poderá ser ainda mais precário após a passagem do fogo
– e da chuva, quando ela vier.

Para chegar a São Pedro de Joselândia são mais de duas horas de estrada de chão, depois de meia hora de asfalto, partindo de Barão de Melgaço pela MT-465 – via que também dá acesso a Mimoso – de onde partimos na manhã seguinte. Há três meses, – não fosse a pandemia do coronavírus, que impediu aglomerações – estaria passando por ali a tradicional cavalgada da festa centenária de devoção a São Pedro, santo que dá nome ao distrito pantaneiro.

Pequenas áreas de pasto seco e folhagens de um marrom cor de cobre dominam o cenário de plena seca já no fim de setembro, igualando flora à areia fina no chão. Uma paisagem muito mais próxima ao que conhecemos do sertão do que a de um pântano, hoje caracterizado por poças de lama, onde animais como garças e capivaras, com olhar de sede, buscam o que restou de água.


Ponte queimada em São Pedro de Joselândia. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora


Até chegar à comunidade, são quatro pontes que atravessam vãos, onde, no período de cheia, ficam cobertos d’água. Se tornaram, no entanto, desvios para três dessas pontes, que foram completamente destruídas pelo fogo que por ali passou.

Por isso, a chuva tão esperada na região pode não trazer o devido sossego às mais de 800 pessoas que moram ali, já que os desvios podem se tornar atoleiro, isolando, de fato, os “esquecidos” do Pantanal.

Não vai ter água suficiente para sair por barco, nem mais ponte para trafegar pelo seco. É o que dizem por ali.


Seo José Antônio, morador de São Pedro de Joselândia há 45 anos. Foto: Edyeverson Hilário/Playagora

“Morar aqui é gostoso, mas e se fica doente? Não tem estrada, vai sair como? Até avião não está assentando mais aí. Para nossa segurança, é preciso que essas pontes sejam feitas rápidas. Aquele desvio fica ‘dessa’ fundura de água”, alerta seo José Antônio, aposentado do serviço público, que há 45 anos vive por ali criando o pouco que possui de gado.

“Depois de muito trabalho para construção dessas pontes de madeira, planejadas como a solução para fazer a passagem de água, nós voltamos ao passado. O acesso vai complicar muito como começar a chover”, complementa.


Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

A maioria da população de São Pedro de Joselândia é idosa e precisa de ambulância para se deslocar ao hospital mais próximo em situações de emergência. Uma pequena passou por nós, provavelmente transportando medicamentos para o Posto de Saúde local, que, conforme os moradores, contam com uma enfermeira e um médico que atende às terças, quartas e quintas-feiras até o meio dia.

“Os casos de emergência, como apendicite e infarto, tem que sair daqui o mais rápido possível. Sem a ponte, quando chover vai ser um problema. Tem gente que pode morrer aqui”, conta seu José. Há algumas semanas, ele e a esposa testaram positivo para o coronavírus (covid-19) em Cuiabá.

Uma das pontes queimadas, o pantaneiro acredita que foi ação criminosa; já as outras duas, seria resultado do que chama de incompetência do poder público. “Existiam condições de não deixar acontecer. Seria fácil fazer um aceiro em volta dela com uma hora de máquina. Limpava toda ela em volta e com um carro pipa jogava água pra resfriar. Mas não deram a mínima providência no momento certo, na hora certa”.


Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

O que diz o governo

Em nota ao Leiagora,
Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (Sinfra) informou apenas que prevê obras em 5 mil pontes de Mato Grosso, com a substituição das estruturas de madeira por concreto. Nada foi dito sobre o projeto de uma "transpantaneirinha" na região de Barão de Melgaço, nem sobre as demandas das comunidades em questão. 

Confira nota na íntegra:

Sobre a situação das pontes, a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (Sinfra) esclarece que as melhorias dessas estruturas deverão ocorrer, em razão do lançamento do programa de  substituição de pontes de madeira por aduelas de concreto, bueiros e vigas metálicas para atender uma demanda de até 5 mil pontes em Mato Grosso. O prazo para que as prefeituras indiquem quais pontes precisam ser substituídas está aberto e se as prefeituras realmente considerarem essas pontes como prioritárias, elas devem entregar os projetos hidrológicos para a Sinfra, para que sejam analisados. Uma vez que os projetos sejam aprovados, será possível dar início às obras.

Série de reportagens 

A série "Os esquecidos do Pantanal" foi produzida pela reportagem do Leiagora e durante a semana o Portal trará as matérias que mostram a realidade dessas comunidades e os efeitos das queimadas, além da preocupação com o retorno das chuvas. 

 
Clique aqui, entre na comunidade de WhatsApp do Leiagora e receba notícias em tempo real.

Siga-nos no Twitter e acompanhe as notícias em primeira mão.


 

0 comentários

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do site. É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. O site poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

 
Sitevip Internet