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Notícias / Agro e Economia

01/10/2020 às 14:20

Pantaneiros relatam desespero com o fogo e prejuízos nas comunidades

O fogo chegou às populações tradicionais da maior planície alagada do mundo com todo misticismo de uma resposta da natureza à ganância do homem

Maria Clara Cabral

Pantaneiros relatam desespero com o fogo e prejuízos nas comunidades

Foto: Maria Clara Cabral

Quando o fogo chegou na casa de Ivanildes Conceição, 59, há cerca de uma semana, a comunidade Piuva estava sem energia em Barão de Melgaço. Era por volta das 17h e já escurecia. Na área de cercado, onde ficam as casas na beira do Rio Cuiabá, ela estava sozinha com a filha; na residência ao lado, a cunhada Ana Xavier. “Foi tudo muito rápido”, relata a ribeirinha.

Dias antes, Ivanildes visitava a família em Cuiabá quando foi avisada pelo irmão e vizinho de que o fogo havia atravessado pelas margens do rio. “Eu vim porque fiquei preocupada. Passou uns quatro dias e esse fogo começou a nos rodear. Muita fumaça, gente do céu! [O fogo] passou dois dias pra lá”.

“Lá” é a área de campo, onde os moradores da comunidade ribeirinha criam gado coletivamente – e onde estava o irmão de Ivanildes no momento do fogo. Provavelmente já avaliava o prejuízo de animais, alguns mortos e outros machucados pela invasão das queimadas.

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Ivanilde Conceição, da comunidade de Piuva. Foto: Edyeveson Hilário/Leiagora.

“Antes o fogo chegou perto da casa do meu irmão, mas ele conseguiu desviar e a gente achou que nem vinha mais. No dia, chegamos a ir até a cerca pra ver, mas ele [o fogo] ainda tava longe. Foi menos de 15 minutos o tempo de a gente voltar e ele chegar na beira da cerca. O vento também tava vindo, então isso atrapalhou bastante”.

Ivanildes e Ana logo ligaram para um compadre que mora ali perto para que ele fosse ajudá-las a apagar o fogo. Para sorte delas, a energia voltou antes de uma tragédia, e eles conseguiram puxar água do rio com uma bomba, ficando horas em combate.

“As faíscas voavam. Era só cair num lugar que já pegava fogo. Então o nosso maior medo era que caísse em cima da casa”, relembra a ribeirinha.


Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Viúva, Ivanildes nasceu, cresceu, se casou e criou seis filhos na comunidade Piuva. Em 59 anos, ela conta que nunca viu algo parecido. “Todo ano acontece [as queimadas], mas esse ano foi uma coisa muito desesperadora pra todo mundo. Nunca tinha visto assim dessa maneira, não mesmo”, afirma. Para ela, uma tragédia anunciada.

“Eu não sei o que aconteceu. Já tá escrito na bíblia tudo isso, então a gente chega a pensar que é o começo do fim dos tempos. Mas pra ser sincera, eu penso que é o homem o culpado de tudo isso. Os homens, as autoridades, as pessoas que querem ser maiores do que Deus, fazendo coisas impossíveis”.


São Pedro de Joselândia. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Brigadas comunitárias

No distrito de São Pedro de Joselândia moradores se uniram para impedir que o fogo chegasse em suas casas. “Foi feita uma força tarefa e a comunidade partiu para cima. Cerca de 30 pessoas na linha de frente”, conta José Antônio.

Foram pelo menos dois combates próximos da comunidade; em um deles, foi necessário fazer o contrafogo. Diferente dos ribeirinhos de Piuva, o distrito contou com o apoio do Corpo de Bombeiros. Segundo seo José, dois moradores chegaram a se machucar durante o combate, mas o socorro chegou rápido.


Para conter os incêndios, também foram usadas bombas d’agua, que secaram poços artesianos privados de algumas famílias com mais condições. Contraditoriamente, o abastecimento de água é um dos principais problemas enfrentados pelas comunidades tradicionais que residem na maior planície alagada do mundo.


José Antônio, do distrito São Pedro de Joselândia. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Para o pantaneiro, o distrito só não foi mais diretamente atingido porque, prevendo o avanço do fogo, a comunidade vem conquistando estrutura e se organizou para enfrentar a situação. No início de maio, ele próprio chegou a solicitar treinamento de brigadistas na comunidade e foi atendido.

A coordenadora do núcleo de Defesa Civil de São Pedro de Joselândia, Therezinha da Silva, 31, enfrentou os incêndios de perto, tanto no distrito quanto em localidades mais afastadas. Nascida na comunidade, ela conta que se assustou com a força e rapidez do fogo, como nunca visto. 

“Eu vi de perto. É surreal. Você acaba de jogar agua com um galão, passa dois minutos e tá pegando fogo de novo. Cheguei em casa e não consegui dormir pensando naquilo. Tem fumaça que brota de poça de lama”.

Contra qualquer tipo de queimada e desmatamento, Therezinha acredita que a ofensiva do fogo seja uma resposta da natureza sobre a intervenção do homem. "Nós sabemos que mudanças climáticas vem da ação do ser humano. É a ganância que está fazendo tudo isso. Cada um tem sua crença, sua fé e religião, mas a natureza responde".


Therezinha, do distrito de São Pedro de Joselândia. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Sem maquinários e caminhão pipa, ela conta que a população utilizou de balde a facão. Em alguns locais, nem os aceiros foram suficientes para conter os incêndios. “Se o fogo pula um rio, você acha que ele não pula um aceiro?”, questiona Therezinha. Nas casas, os moradores também foram orientados a molhar todo o redor e não utilizarem fogo nem para queimar lixo.

“Minha tia mesmo acreditou que não teria perigo de o fogo chegar. No dia, quando o marido dela saiu, não passou dez minutos e ela contou que foi lavar vasilha quando viu o fogo estalando, encostando na casa dela. Foi o tempo de pegar a mangueira”.


Fogo na estrada para São Pedro de Joselândia. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Prejuízos

“Muitos aqui sobrevivem da agricultura, com essa seca e com o fogo não precisa nem falar o restante”, lamenta Therezinha. No distrito e nas comunidades ribeirinhas ao redor, ela conseguiu distribuir cestas básicas às famílias afetadas
a partir do núcleo de Defesa Civil.

Nas áreas de cercado, tanto na Piuva, quanto em São Pedro de Joselândia, não morreram animais, mas no campo foram muitas as perdas, gerando prejuízos às comunidades. É que para os pequenos produtores pantaneiros, pecuaristas e agricultores, o boi e as plantações, além de um meio de subsistência, são uma forma de investir suas pequenas economias.

"Ao invés de colocar o dinheiro no banco, o pantaneiro compra gado. Não são muitas cabeças, entre 10 a 25 por família. Então uma que perde já é um grande prejuízo”, explica Waldileno, filho de Ana Conceição e membro da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira. "Minha mãe e meu padrasto, por exemplo, tiram leite e chegam a vender na beira do rio. Quando sobra faz queijo e doce, vários outros fazem isso", complementa.

Comunidade de Piuva. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Com menos peixe no rio, Odésio da Silva Taques, 60 anos, vem aliando a prática da pesca com a apicultura. Com as queimadas, ele perdeu sete caixas de abelha cheias de mel. Só sobraram três.

“Cada caixa dessa dá em torno de 10 litros de mel, cada litro eu vendo a R$ 60. A maioria do mel eu tiro prá nós [a família], mas quando o pessoal procura eu vendo também”, conta. Agora,
Odésio corre atrás do prejuízo e se organiza para comprar novas caixas, que saem em torno de R$ 200 cada.  

Antes do fogo, os pantaneiros já vinham sofrendo com a morte de gado pelo ataque de onças que, nos últimos anos, se aproximam cada vez mais. O padrasto de Waldileno, inclusive, chegou a ser pego por uma. “Quando falava de onça aqui, vinha um monte de gente ver pegada. Agora o povo ouve até corre só de ouvir”, relata o ribeirinho.


Odésio da Silva. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

A mãe Ana Conceição conta que todos os dias, pela manhã e a tarde, o esposo vai a campo tocar o gado; agora, também para tentar curar os animais feridos. Assim, a necessidade de medicamentos e insumos para tentar recuperar a criação aumentam os gastos ainda mais. No momento da entrevista, ele estava na cidade comprando ração, já que o pasto foi devastado pelo fogo.

Nessas andanças entre campo e cercado, os ribeirinhos também relatam ter encontrado muitos animais silvestres mortos, inclusive alguns ameaçados de extinção, como o lobo-guará. “É veado, porco do mato, jacaré, anta e até um filhote de onça-pintada. É muito animal queimado”.

Igreja Bom Jesus, na comunidade de Piuva. Foto: ALMT/Reprodução


Dias desses, o fogo ameaçou o centro cultural da comunidade. Uma local que concentra importantes patrimônios históricos: as piúvas, a Igreja do Bom Jesus e casarões históricos construídos com materiais que datam a época que os bandeiras exploravam os rios pantaneiros. 

Foi com esforço que os ribeirinhos cnseguiram desviar o fogo do local, impedindo prejuízo, além de material, imaterial. Ali, as comunidades de Barão de Melgaço celebram Bom Jesus. Esse ano não teve festa por causa da covid.  
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