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03/10/2020 às 11:02

Povo das águas sofrem escassez com barragens e temem poluição de rios após queimadas

Os incêndios no Pantanal voltaram o mundo para o bioma, mas ribeirinhos que ali vivem vêem ameaçada sua soberania alimentar há décadas; bacia tem 50% do potencial hidroelétrico já explorado

Maria Clara Cabral

Povo das águas sofrem escassez com barragens e temem poluição de rios após queimadas

Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Aos 84 anos, o pantaneiro Ciro Taques é, atualmente, a pessoa mais velha da Piuva, em Barão de Melgaço. Ele nasceu na comunidade, onde foi criado e dali nunca saiu. A última vez que se lembra de ter visto um fogo tão grande no Pantanal, ele ainda não tinha 15 anos de idade. “Todo ano vem [o fogo], mas, bravo como esse ano, muito pouco. Não foi brincadeira”, relata.

Neste ano, as queimadas no Pantanal voltaram os olhos do mundo para o bioma que nunca havia protagonizado os noticiários por tamanha tragédia ambiental. Mas na planície mais alagada do mundo, populações nativas vêm sofrendo com impactos ambientais na região há décadas.

Comunidades ribeirinhas, por exemplo, assistem a crescente escassez de água e peixe no rio, fonte de renda e soberania alimentar.

Ciro mora em uma casa de pau a pique na beira do rio Cuiabá, de onde viu o incêndio atravessar as margens. Ao lado da sua, ele chegou a construir uma casa de alvenaria, mas nunca quis se mudar. Faz questão de manter sua rotina e diz que ainda vai para rio toda madrugada buscar o peixe, seu alimento principal.

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Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

“Carne para mim é um dia e pronto; hoje nenhuma presta. No meu tempo não tinha essa de remédio pra boi, agora é todo mês duas ou três injeção num gado desse. Que será que sai do corpo dele? Num vou comer veneno, nem leite eu aprecio. Num como ovo, nem galinha. Pra mim é peixe”, reclama o ribeirinho.

Com sua dieta, ele garante que nem a fumaça que tomou conta do Pantanal abalou sua saúde, que ele mantém, segundo os amigos, no caldo de piranha. “E amargo”, brinca, “cachacinha com raiz”, explica e logo desmente: “não sei o que é gosto de pinga, cerveja e nem guaraná. Não gosto de nada na garrafa. Gosto mesmo é de um suquinho”.

Mas o ribeirinho diz não está mais fácil pegar peixe, nem plantar para colher ingredientes naturais.

“A água chegava até aqui e eu matava peixe com pau, peixão de até 30 quilos”, diz, apontando para a varanda. “Punha a linha daqui mesmo e ia buscar ele. Agora não tem nada. O rio não enche pra criar o peixe. Mês de outubro no meu tempo já tinha alagação, agora é só seca. O Manso vai segurando tudo e não chove. Em setembro só aparece água do rio quando eles soltam”.


Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

É que a construção de qualquer barragem para hidroelétricas, como a Usina de Manso, altera o fluxo contínuo dos rios, invertendo a sazonalidade e alterando todo ciclo d’agua no Pantanal. 

“É como uma artéria, se você bloqueia uma artéria você altera todo o funcionamento do seu organismo”, explica a bióloga Débora Calheiros que há 30 anos trabalha no Pantanal estudando gestão de bacia hidrográficas, ecologia e contaminação ambiental dos rios que formam a planície.


De acordo com a bióloga, a tendência das hidroelétricas é a liberação de água na época de seca e barragem do fluxo na cheia, impedindo a formação de ilhas para desova de animais, como o peixo de seo Ciro.

A especialista explica que as usinas funcionam conforme com a demanda de energia do país, a partir de um sistema nacional, e não necessariamente de acordo com a sazonalidade do bioma. No caso de Manso, uma grande barragem de cerca de 43 quilômetros de extensão, o nível do rio varia diariamente. Os horários de pico, por exemplo, são os que mais "soltam" água.

Políticos e engenheiros argumentaram, à época, que a construção da Usina de Manso, na década de 1990, foi prevista para regular as enchentes do rio Cuiabá. Mas, além da água, a barragem também retém o fluxo de nutrientes e impede a migração de peixes para reprodução. “Os rios precisam dessas enchentes, elas não podem ser alteradas, isso está previsto na Constituição", afirma a bióloga.


Ivanildes Conceição, 59 anos, ribeirinha da comunidade de Piuva. Foto: Edyeverson Hilário

A vizinha de Ciro, Ivanildes Conceição tem a mesma visão sobre a escassez de água e peixo no rio. “Eu acho que o Manso, porque ele [o lago] segura a água. Quando começaram a construção, eu lembro que morreu muito peixe. Antigamente a gente plantava bastante batata na praia. Uma vez, quando ainda tava seco, veio uma enchente e matou tudo”, relata.

Depois que o esposo faleceu, há cerca de quatro anos,
Ivanildes desistiu das plantações e hoje só se alimenta do que compra no mercado. Dificilmente come peixe. “Do rio o bicho está se acabando. Hoje em dia tem lugar que era poço e tá rasíssimo. Se o rio não enche mais, onde o peixe vai criar? Quando vinha vazante era muito peixe, dava gosto de ver. A gente andava de canoa por aqui no terreno”, lembra a riberinha.

“Num tempo desses, a gente tava tirando um barco de verdura. Batata, mandioca, abóbora. Hoje ninguém mais tem isso por aqui. Quem pode, tem que ter uma bomba para molhar plantação, porque não dá uma chuva que presta. Só tá comendo comprado, se não tem dinheiro não come”, relata seo Ciro.

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Comunidade de Piuva, em Barão de Melgaço. Foto: Edyeversn Hilário/Leiagora

50% do potencial hidroelétrico já explorado

Débora Calheiros afirma que o Pantanal tem 180 projetos de hidrelétricas, no planalto e na planície,
que impactam os principais rios da bacia. São 47 hidroelétricas já em operação – as maiores são oito ou nove –, sendo 13 em construção e 120 previstas.

“Uma loucura”, opina Débora. Isso porque, de acordo com a pesquisadora, a bacia do Pantanal está com 50% do potencial de geração de energia hidroelétrica já instalado.

“Isso é um nível alto. Se instalarem mais essas 120 vai ser insustentável, porque impacta o Pantanal e a produção pesqueira, que é muito importante para geração de emprego e renda na região. Por isso a gente já conseguiu segurar essa proliferação aprovando um planejamento no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Agora cabe aos estados respeitarem esses estudos”, alerta.


Para ela, a energia solar é uma alternativa no Brasil. "A gente usa menos energia solar que o Japão e Alemanha, para um país de clima tropical isso é um absurdo. Tem essa questão de que a energia solar não se mantém, mas o ideal é ter várias fontes. A geração de energia eólica também desenvolveu bastante”, afirma a especialista.


Depois do fogo, chuva pode não ser
suficiente para amenizar os problemas no Pantanal. Foto: Edyeverson Hilário/Leiagora

Poluição após primeira grande chuva

Para seo Ciro Taques, só uma boa chuva para amenizar os impactos das queimadas na região. Já Ivanildes Conceição acredita que a chuva depois do fogo, ao menos as primeiras, pode trazer outros problemas, como a poluição do rio com cinzas e restos de materiais.

“A minha preocupação como mãe é isso [a polução]. Muitos animais morreram nas queimadas. Meu cunhado mesmo mexe com gabo, vai todo dia no campo e vê muito muito bicho queimado. Então pensa quando vier a primeira chuva!”, alerta a ribeirinha.

Assim, a comunidade que já sofre com a falta de abastecimento, pode ter o acesso à água potável ainda mais difícil. Débora Calheiros tem confirma a preocupação. A bióloga relata que na Barra do São Lourenço, comunidade ribeirinha que vive às margens do rio Paraguai, região sul do Pantanal, os moradores já estão sofrendo com a mortandade de peixes e a poluição.

Ivanildes prevê o mesmo para Piuva. “Eu mesmo já não uso a agua do rio aqui.
Não dá pra beber. É só pra lavar roupa e molhar as plantas, porque tem que colocar cloro pra ela ficar bem limpinha. Pra pegar água limpa, a gente [54 famílias que vivem na comunidade] tem que pegar num poço lá longe”.

Depois que o fogo chegou a seu terreno, de hora em hora ela tira de casa a sujeira das cinzas que se espalha com o vento. “Não se assuste se ouvirem falar da chuva de cinza. Gente, isso não é castigo de Deus, isso não vem do céu”.
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