Cuiabá, quinta-feira, 09/05/2024
18:31:33
informe o texto

Notícias / Entrevista da Semana

25/12/2022 às 08:00

De Jesus Cristo a Papai Noel: o que é religião, o que é registro histórico e o que é mito?

O Leiagora entrevistou Aristides Costa Neto, teólogo, filósofo e pedagogo, sobre as tradições de Natal

Priscila Mendes

De Jesus Cristo a Papai Noel: o que é religião, o que é registro histórico e o que é mito?

Foto: Arte: Leiagora / Foto: Arquivo Pessoal

O nascimento de Jesus de Nazaré, aquele que é ungido, consagrado, o Cristo, tem grande importância mundial. A celebração do Natal é feriado em 149 dos 193 países. No Brasil, mais de 90% da população se considera cristã.

E as festividades se concentram em tradições religiosas e míticas (quando se referem ao Papai Noel).

Mas o que é histórico e o que é religioso? Como consolidou-se 25 de dezembro do calendário gregoriano como a data do nascimento? E como surgiu a figura do ‘Bom Velhinho’?

O Leiagora entrevistou Aristides Costa Neto, professor de várias disciplinas nos campos da Filosofia e da Pedagogia nos dois campi de Várzea Grande da União das Faculdades Católicas de Mato Grosso (Unifacc/MT).

Aristides tem três graduações (Filosofia, Pedagogia e Teologia), tem Especialização em Filosofia e é mestre e doutor em Educação. Exerceu o serviço religioso na função de padre entre os anos de 1994 e 1997 e licenciou-se das obrigações clericais por questões particulares.

Confira a entrevista na íntegra:

Leiagora - O que é considerado registro histórico e o que é manifestação de fé no que diz respeito ao nascimento de Jesus Cristo?

Aristides Costa Neto - São as duas coisas ao mesmo tempo, porque foi a fé em Jesus Cristo que levou aos registros e às narrativas que você encontra, por exemplo, nos livros sagrados, que nós chamamos de evangelhos. A Bíblia, o Novo Testamento é ao mesmo tempo um livro sagrado e um registro histórico. São datados do primeiro século. E bem próximo ao momento em que Jesus Cristo viveu. Então, você tem essas narrativas, que são as comunidades reagindo ao desaparecimento de Jesus e falando sobre ele, sobre a sua vida, sobre a sua história, sobre os seus ensinamentos. Tudo isso é histórico, mas, ao mesmo tempo, aconteceu, houve um esforço feito pra isso por causa da fé, porque ele era uma pessoa muito especial, ele era o próprio filho de Deus encarnado.

Leiagora - Quando o senhor diz que era uma pessoa muito especial… Dizer “o próprio filho de Deus encarnado”, isso é uma leitura católica. Mas, historicamente, as pessoas convivendo com ele conseguiam perceber essa diferença dele daquela sociedade?

Aristides Costa Neto - Essa é uma coisa interessante, porque Jesus tem uma história em que fica desaparecido por 30 anos, vivendo em Nazaré próximo a sua família, aos seus parentes, próximo de José, próximo de Maria, em alguns momentos há uma narrativa sobre as atividades dele, mas é aos 30 anos que ele emerge como uma figura pública. É a partir desse momento que as pessoas começam a perceber algo diferente nele. E, na verdade, muitos se aproximam, é um volume bem grande de pessoas, mas que, com o passar do tempo e dos acontecimentos, muitos também se afastam. Isso significa que muitos deixaram de ver nele aquela promessa, né? Os judeus imaginavam o Messias forte, guerreiro, tipo Rei Davi, alguém que veio pra batalha, pro enfrentamento duro dos romanos.

E Jesus vem como uma figura diferente, ele é especial, sim, ele dá atenção pras pessoas, ele faz coisas extraordinárias diante dos pobres, das pessoas necessitadas, de prostitutas, mas, ao mesmo tempo, ele não tem essa promessa [de grandeza] e muito se decepcionam com essa imagem [simples]. Agora, aqueles que aprendem a ver nele essa nova figura, esses é que levam até o fim, até às últimas consequências a proximidade com ele. E narram a história dele e dizem que, de fato, ele foi extraordinário, porque o que aconteceu com ele revela nele a figura do próprio Deus. Quem ficou foi um grupo pequeno, que a gente depois conhece como os 12 apóstolos, além da figura de Maria, dos parentes de Jesus, como São Tiago, que chegou a ser um responsável pelas comunidades de Jerusalém, entre tantas pessoas.

Leiagora - Qual a importância da data - o Natal, 25 de dezembro - para a cultura ocidental?

Aristides Costa Neto - A cultura ocidental é marcada pelo Cristianismo desde o século quarto, com a conversão do imperador romano Constantino e todos os povos e europeus que se desenvolveram a partir daquele momento foram marcados, por essa crença, por essa religião e pela do nosso senhor Jesus Cristo do modo como ele é apresentado nos quatro evangelhos. Tem uma uma figura legal lá no evangelho de São Lucas, que é a figura de Simeão, que vai dizer no Capítulo 2 que ele é a luz das nações e glória do povo de Israel. Ele marca, de fato, a figura de Jesus, a narrativa sobre a vida dele, a pessoa dele que foi conhecida, reconhecida pelos primeiros discípulos e, depois o que foi transmitido para gerações seguintes teve uma marca muito profunda na história da Europa e nos povos que foram colonizados pelos europeus aqui na América, na África, na Ásia, em todos os lugares do planeta. 

Leiagora - Há questionamentos acerca da data de nascimento de Jesus, especialmente porque, neste período, já se celebrava na Roma Antiga o Solstício de Inverno. O que se pode falar sobre essa data e a comparação com as festividades pagãs?

Aristides Costa Neto - Os povos antigos não tinham esse hábito de fazer registro em cartório do nascimento como a gente tem hoje (risos). ‘Nasceu em tal dia’, ‘o pai fulano, mãe fulana no cartório tal’, isso não existia. As pessoas nasciam e eu acredito que mesmo a combinação de nascimento dos povos orientais não era da forma como nós fazemos hoje. Então, é claro, essa data não é explícita, inclusive o nascimento narrado na Bíblia tem imprecisões. O nascimento dele em Belém, por ocasião do recenseamento na época [do governador da Síria] Quirino [tem imprecisões]. Mas é um fator histórico aproximado. Você não tem o dia e o mês exatos. Mas você tem um fato histórico e isso é a verdade em razão da existência do próprio Jesus e pelo esforço de narrativa dos anos anteriores à morte dele, o que causou essa preocupação com o registro todo. Isso não é claro. Mas para a igreja [católica], essas datas foram resgatadas posteriormente pela necessidade de memória, de lembrança, de celebração, afinal de contas acredita-se que é Deus que se fez homem e habitou entre nós. Por que não lembrar isso? Por que não tornar isso um um momento de celebração litúrgica?

E, sim, inclusive enculturando-se nos povos ocidentais que eram pagãos, que tinham uma festa muito bonita pra outras divindades, mas era uma festa bonita, celebrativa, de solidariedade, era um momento de renovação espiritual e isso foi utilizado, sim, pra marcar esse nascimento de Jesus, lembrando essa passagem do Capítulo 2 de São Lucas, Simeão fala que Jesus é a luz da nossa vida e essa festa de dezembro no Hemisfério Norte lembra exatamente o momento menos iluminado do planeta Terra. Nós temos dois momentos fortes, que é a Primavera e esse momento do Inverno e o ‘Sol Invicto’ era uma celebração que se fazia na Europa em Roma, mas que serviu para acomodar essa fé de que Jesus era a luz que veio para iluminar os povos. [...] E nós estamos ali no Solsíticio de Inverno no Hemisfério Norte… Pra nós aqui é diferente. Nós celebramos o Natal no Solsíticio de Verão. [...] Mas o Natal acaba tendo a representação como uma data avulsa.

Leiagora - O senhor pode explicar sobre a tradição de dar presentes no Natal?

Aristides Costa Neto - Essa enculturação que aconteceu por conta da celebração no Ocidente, do cristianismo assumindo outras culturas, já continha esses elementos de troca de presente e foi reforçado, obviamente, por uma imagem do nascimento de Jesus que acontece lá no [evangelho de] São Mateus, quando ele lembra da visita dos Reis Magos, que chegaram e presentearam o menino que nasceu descendente de uma autoridade judaica: o filho de Davi, o novo Messias, aquele que veio para inaugurar um novo tempo. Essa imagem ficou muito interessante marcada pelo cristianismo, porque nem as crianças nem as mulheres eram figuras muito importantes na sociedade.

Mas o cristianismo - isso é reconhecido inclusive por doutores, historiadores que não são sequer, crentes, nem católicos - isso acabou transformando a história e a dignidade tanto das crianças como das mulheres, as figuras femininas.

Então, a troca de presentes no Ocidente que já acontecia de maneira natural foi incorporada pelo cristianismo e reforçou essa imagem positiva, que aparece no Novo Testamento com a figura dos reis magos que vieram presentear esse menino, um momento novo da história da humanidade.

Leiagora - Quando se fala em Natal também, além do nascimento de Jesus, tem uma linha das festividades voltada ao mito do Papai Noel. O senhor pode contar como São Nicolau foi associado às tradições de Natal e como ele "se tornou" Papai Noel nessas associações?

Aristides Costa Neto - São Nicolau (a data de morte dele é 6 de dezembro, muito próxima ao Natal) é uma figura histórica, ele foi um bispo da igreja [católica], é considerado um santo para todas as tradições mais antigas, tanto a católica, como a ortodoxa, a igreja luterana e ele nasceu no século 3. É de uma família próspera, de uma família rica, mas que devotou a sua vida ao sacerdócio e se tornou um bispo. Muita coisa se conta na região acerca dele, inclusive, por narrativas mitologizadas, mas de fato ele teve uma estima muito grande do povo, que cultivou a imagem dele falando do amor que ele tinha pelas crianças, a devoção por ‘Jesus Menino’, pela ‘Sagrada Família de Nazaré’ e ele acabou fazendo muitas coisas boas… Numa das histórias aparece que ele salvou da prostituição três irmãs, cujo pai não tinha dinheiro e ele acabou conseguindo os dotes para que o pai é casasse essas meninas e salvasse a vida delas. 

A figura dele começa na região que é a Turquia nos dias atuais, mas, no século 11, um grupo de soldados roubou os ossos [de São Nicolau], as relíquias, e os levou para Bari, na Itália. E é nesse momento que a figura de Papai Noel vai ganhando outras configurações e desenhos, inclusive essa história de um homem grande, barbudo, com barba branca, com saco de presente… e acaba sendo explorado por diversas categorias de pessoas. Ele é padroeiro dos estudantes, padroeiro de comerciantes, padroeiros marinheiros e eu acredito que, ao longo da história, associaram essa figura de São Nicolau a esse homem que leva um saco de brinquedos, porque, pros comerciantes, é interessante fazer essa correlação, né? No século 19 e principalmente no século 20, isso se fortaleceu com as narrativas das diversas denominações protestantes norte-americanas. Eles resgatam essa figura, eles descrevem na literatura e depois começam as representações pictóricas ou pinturas e aparece essa figura…

E uma marca fazendo propaganda e marketing do seu produto, como é o caso da Coca-Cola, vai associar essa figura criada no final do século 19 à sua marca e aí vai explodir no mundo. Todos os comerciantes, o comércio e o marketing fortes sobre essa figura, no momento de grande sensibilidade social, pra necessidade de atendimento da criança, das pessoas necessitadas, em fazer o bem, essa questão da comoção, isso reforça, sem dúvida nenhuma, essa imagem e acaba também sendo, de alguma forma, explorada pra finalidade comercial e mercadológica.

Mas isso cresceu ao longo do tempo. Agora, a figura de São Nicolau, sem dúvida alguma, foi muito forte e marcante na história do Oriente e do Ocidente. 

Leiagora - O senhor gostaria de deixar alguma mensagem neste Natal?

Aristides Costa Neto - A figura de Jesus e a de Papai Noel às vezes aparecem como mito. Mas, independentemente do modo como aparecem, o efeito delas é muito positivo. É um momento, sem dúvida, em que muitas pessoas estão passando necessidade e a gente se volta, nosso coração, o nosso pensamento, o nosso comportamento está mais voltado, mais aberto pra solidariedade E isso é muito positivo! Eu acredito que esse seja o maior legado do cristianismo pra história da humanidade, porque, mesmo nos momentos mais difíceis (a gente está assistindo guerra na Europa, muitas vezes divisão por causa das ideologias políticas), mas há um momento em que todo mundo resolve parar e quem une todo mundo é a figura de Jesus, é a solidariedade estampada no rosto do Papai Noel, dessa figura emblemática que copia a figura histórica de São Nicolau…

Então, são coisas muito positivas que a gente deve cultivar, sim, independentemente da religião e da denominação [religiosa] ou mesmo da própria ausência de religião, isso não priva ninguém de celebrar esse momento como um momento forte, de unidade da humanidade e da busca do bem comum, como já cantou John Lennon em ‘So, this is Christmas’ [Happy Xmas (War Is Over)] e que nos faz tanto bem lembrar. E que isso fique como uma marca positiva.

Leiagora - Muito obrigada! Feliz Natal pra você também.
Clique aqui, entre na comunidade de WhatsApp do Leiagora e receba notícias em tempo real.

Siga-nos no Twitter e acompanhe as notícias em primeira mão.


 

0 comentários

AVISO: Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do site. É vetada a inserção de comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros. O site poderá retirar, sem prévia notificação, comentários postados que não respeitem os critérios impostos neste aviso ou que estejam fora do tema da matéria comentada.

 
Sitevip Internet