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Notícias / Entrevista da Semana

22/08/2021 às 08:00

Editais de incentivo à Cultura e retomada das atividades artísticas presenciais; quais os caminhos pós-pandemia para as artes?

O Leiagora entrevistou Jan Moura, secretário-adjunto de Estado, sobre suporte à classe cultural, balanço das iniciativas de socorro financeiro e perspectivas

Priscila Mendes

Editais de incentivo à Cultura e retomada das atividades artísticas presenciais; quais os caminhos pós-pandemia para as artes?

Foto: arte: Leiagora; foto: arquivo pessoal

O setor cultural, como se sabe, foi o primeiro a parar, em função da pandemia, e é o último a retomar, ainda timidamente e com muitos cuidados. Afinal, a produção artística gera, mesmo, aglomeração (pequena ou grande), palavra tão temida atualmente, mas tão celebrada há um ano e meio.
 
A classe artística se reinventou de tantas formas para seguir atuando, mesmo com medidas restritivas, espaços culturais fechados, proibições de espetáculos.
 
O ano de 2020 foi um período de suspensão das atividades, muita dificuldade financeira dos trabalhadores da cultura e iniciativas tímidas, às vezes paliativas, para atender o grupo. Paralelamente, a cobrança por medidas efetivas para socorrer a categoria.
 
Dois mil e vinte e um, por outro lado, veio com grande agitação cultural com o advento dos recursos provenientes da Lei Aldir Blanc. Uma enxurrada de programação, sempre "reinventada", já que atividades presenciais ainda são bastante limitadas.
 
O Leiagora entrevistou, esta semana, o secretário-adjunto de Estado de Cultura, Jan Moura, sobre a Lei Aldir Blanc em Mato Grosso e outros editais, cujos resultados foram publicados nesta semana, o Movimentar Cultura e o Salão Jovem Arte, voltado especialmente para os artistas virtuais.
 
Jan Moura é comunicador social, com habilitação em Radialismo, mestre e doutor em Estudos de Cultura Contemporânea, os três pela Universidade Federal de Mato Grosso, é ator desde o Ensino Médio – compôs o Pessoal do Ânima e é membro fundador da Confraria dos Atores, tem longa experiência profissional como gestor cultural no Sesc Arsenal e, antes de assumir a Secretaria-Adjunta, em fevereiro deste ano, esteve por 15 meses superintendente de Políticas Culturais da Secel/MT, acompanhando todos os desafios dos trabalhadores da Cultura desde o começo da pandemia.
 
Atualmente, está cursando Administração, para conquistar o “outro lado” da gestão pública, além de cursar Pós-graduação em Gestão Cultural Contemporânea, do Itaú Cultural. “A gente não para de estudar, né? É um caminho sem volta, sempre tem coisas novas para aprender”, justifica.
 
Leia, na íntegra, a entrevista que Jan Moura concedeu ao Leiagora:
 
Leiagora - Esta semana, foi divulgado o resultado dos editais Movimentar, que contemplaram projetos culturais e esportivos. A Cultura inscreveu centenas de trabalhos. Comente, por favor, sobre essa seleção e a importância do repasse financeiro para a categoria.
 
Jan Moura - O edital Movimentar nasce também como uma necessidade de a gente tentar minimizar os impactos causados pela pandemia e pela necessidade de isolamento social que a pandemia exigiu, fechando bares, centros culturais, teatros, cinemas... e isso impacta diretamente no setor cultural e esportivo, né? A Cultura, como é dito bastante e é sempre bom reforçar, foi uma das primeiras que pararam na pandemia. Então, todos os eventos, todas as ações, todos os espaços... porque a Cultura, de fato, é uma ação que necessita e nasce na aglomeração, né? Da participação coletiva, da experiência coletiva, então, nada mais do que necessário a gente interromper.
 
Mas isso, de certa forma, impacta diretamente o setor produtivo da Cultura. A gente tem dados aí recentes que já deve estar chegando na casa de R$ 2 bilhões de perdas, direta e indiretamente, por conta da pandemia, seja na realização de grandes eventos, seja de feiras, espetáculos. E talvez a gente deva demorar ainda pelo menos uns dez anos para recuperar o que, de fato, a perdemos: perdas indiretas, porque deixamos de movimentar hospedagem, alimentação, locação de espaços, relocações de estrutura... e também diretamente aos artistas, né? Que pararam de ser contratados.
 
Então, o Movimentar é a nossa terceira ação específica pro atendimento emergencial. Começamos em 2020, com o Festival Cultura em Casa, já no começo da pandemia: lançamos um edital de R$ 300 mil para a contratação de artistas, para tentar movimentar esses artistas dentro de casa, era um festival que acontecia on-line basicamente, uma corrente que aconteceu no país inteiro. Logo depois, recebemos o desafio da Lei Aldir Blanc, um presente muito positivo, que a gente entendeu que nasce de uma movimentação política dos artistas... eu acho que como sempre passamos por esse momento de crise, os artistas se juntaram e entenderam a importância de estarem unidos e cobraram do poder público uma resposta e essa resposta foi a Lei Aldir Blanc, que injetou no país mais de R$ 3 bilhões.
 
Da Aldir Blanc, a gente vem para cá com o edital Movimentar, porque percebemos que muitos artistas, especialmente os artistas da noite, os músicos, enfim, não tiveram acesso à Aldir Blanc. Porque, apesar de ser um recurso extensivo, ele também era limitado. Então, percebemos que muita gente, ou porque não sabia participar de um edital ou um projeto grande, enfim... Apesar de a Aldir Blanc ter atendido bastante novos proponentes, mas o Movimentar, a gente pensou de uma outra forma, queríamos atingir aquele artista que não teve acesso à Aldir Blanc. Inclusive uma das prerrogativas do Movimentar é que quem teve acesso à Aldir Blanc não poderia ter acesso ao Movimentar e eu acho que, apesar de ser um recurso pequeno, foi uma das coisas positivas do Movimentar.
 
E ele tem uma dimensão que eu achei bastante interessante, que é a dimensão pedagógica, no sentido de fazer com que as pessoas acreditem que o recurso público é possível ser acessado, ele [o edital] era de fácil inscrição, tentamos diminuir um pouquinho mais a carga burocrática, tentou facilitar a ficha de inscrição, ela era autodirigida, então a gente fazia perguntas para ajudar as pessoas a responderem. Isso foi uma forma de dar um pouco mais de acessibilidade. Então, por exemplo, em vez de falar 'Justificativa', que é um termo que, para nós que trabalhamos com projeto cultural já é fácil de entender, mas, para várias pessoas que nunca fizeram um projeto, era muito difícil entender. A gente fazia perguntas: 'Por que seu projeto é importante'? 'Onde você pretende realizá-lo'? 'Como você pretende realizar seu projeto'? 'Quem vai participar com você'? Então, essas perguntas, de alguma forma, ajudavam as pessoas a responder e isso fez com que alcançássemos o maior número de inscritos da história de editais da Secretaria. Maior, inclusive, que a quantidade de projetos que a gente teve na Aldir Blanc. Na Aldir Blanc, teve 1400 inscrições na Cultura e, no Movimentar, chegamos, no edital da Cultura, em 1734 inscrições.
 
Leiagora - Na mesma semana, dois dias antes, foi divulgado o resultado do 26º Salão Jovem Arte, com 63 artistas visuais de Mato Grosso. Esta edição retomou a exposição, depois de um intervalo de 5 anos, durante a pandemia do novo coronavírus. Você foi um dos curadores. Como foi a seleção e como avalia este edital no contexto atual?
 
Jan Moura - Quando lançamos o edital do Salão Jovem Arte, estávamos crente que esta pandemia duraria três meses. Era aquele começo da pandemia que não tínhamos muita informação sobre... e a pandemia se estendeu... e a gente não desistiu de fazer, porque acreditamos que seria importante, né? Quando a gente tivesse o momento ideal para realizar o Salão, faríamos. Não sei se já estamos no momento ideal, ainda temos que tomar bastante cuidado sobre a realização deste, né? Mas a gente encara que os espaços tenham voltado à atividade, especialmente os museus, nos espaços expositivos é possível ter uma visita controlada, então estamos bem tranquilos com relação a isso, apesar de cuidadoso, né?
 
As inscrições do Salão foram muito positivas, tivemos mais de 200 artistas inscritos, é a principal vitrine das artes visuais de Mato Grosso, né? Está na 26ª edição, lançou artistas icônicos da nossa cultura, como Gervane [de Paula], a curadoria de Aline Figueiredo foi fundamental naquele momento... ele marca, de fato, a história das artes visuais de Mato Grosso, então, para nós, era muito caro retormar esse projeto. E a gente entendeu, também, que o Salão deste ano deveria trazer um pouco da marca da nossa gestão, uma marca que todo gestor cultural tem que levar: a da diversidade cultural, a marca do direito e o acesso à cultura. São dois itens que, para mim, são muito importantes, que é pensar a gestão cultural como possibilidade de gerar experiências marcantes na vida das pessoas, mas que tragam também a perspectiva da diversidade, que fale sobre quem somos.
 
Eu participei da curadoria e vimos que os artistas responderam ao nosso chamado. Temos artistas indígenas, quilombolas, ribeirinhos, artistas LGBT participando, temos o tradicional e o contemporâneo participando, é uma mistureba, no bom sentido, de perspectivas das artes visuais e eu tenho certeza de que será o maior Salão Jovem Arte da história. Teremos o maior número de premiados da história do Salão, mas também, que não é um troféu, essa marca importante, que é a pluralidade. Fazer que o Salão Jovem Arte traga, de fato, essa pluralidade e essa diversidade da nossa cultura, exatamente neste momento que temos vivido um retrocesso nas políticas para a Cultura, um encrudescimento de um conservadorismo que tem assolado várias instituições, para nós era bem importante que marcássemos território para dizer que nós pensamos a cultura de outra forma, pensa como um espaço das diferenças, espaço que possa, de fato, promover a potência viva da cultura e ela só é potente quando ela pode ser plural, ela pode ser diversa e quando ela tem liberdade de se expressar.
 
Leiagora - A seleção de projetos contemplados com recursos da Lei Aldir Blanc agitou bastante o cenário cultural no primeiro semestre deste ano e segue importante opção de conteúdo e de agenda, tendo em vista a prorrogação do prazo para a execução. Informe alguns números de participação, tendo em vista, principalmente a interiorização da proposta e os grupos vulneráveis.
 
Jan Moura - Quando pensamos na Aldir Blanc e aí também... eu sempre acho que tudo tem uma dimensão de estudo... também queríamos fazer editais em que tivesse a possibilidade de experimentar algumas coisas. Várias coisas deram certo, outras nem tanto, mas acho que uma das coisas que deram muito certo foi a nossa compreensão do que significa um edital. O edital é um instrumento de intervenção, né? A gente pensa no edital como uma ferramenta para agir na sociedade. E a gente age na sociedade tentando corrigir distorções... de acesso, de presença, de diferenciação... E o que a gente pensou na Aldir Blanc sobre isso? Primeiro criar editais que pudessem atender a diversidade da cultura, então temos edital premiando os mestres tradicionais, temos edital fomentando os negócios criativos, edital focado na juventude na perspectiva de profissionalização para Comunicação e Cultura, teve o Nascentes, que tinha essa poesia do nascimento, de criar produtos, de ativar novamente a potência da Cultura e a gente tinha os festivais. Entendemos que esses cinco editais minimamente davam conta de trazer o quee acreditávamos para a Cultura.
 
E os resultados foram ótimos! Tivemos ampliação do número de inscritos em nossos editais. A Aldir Blanc marca um novo momento de relacionamento com a questão pública. Desde o começo, criamos mecanismos para que as pessoas tivessem certeza que participariam de uma seleção transparente, justa, democrática... então a gente fazia lives, conversas, atendimento full time, basicamente 24 horas, porque, se não estávamos atendendo em nosso telefone, respondíamos pelo whatsapp em casa... para nós era muito importante dar total transparência em todo processo, desde a criação: a gente teve lives e conversava com os artistas para entender o que eles esperavam de nós. Então, eu acho que conseguimos resolver algumas coisas. Só para você ter uma ideia dos resultados, a Aldir Blanc marca esse novo momento da nossa gestão, que é dar acesso àqueles que nunca tiveram acesso a recursos públicos e o número que temos hoje é de que 62% dos aprovados na Aldir Blanc nunca tiveram acesso a recurso público, são novos proponentes, jovens, indígenas, quilombolas, a comunidade LGBT participando em massa... Isso traz pontos positivos, mas também traz grandes desafios, como a prestação de contas. São pessoas que provavelmente teriam dificuldades na prestação de contas, então lançamos, logo na sequência, um curso de prestação de contas, para ajudar as pessoas a usarem da melhor forma possível os recursos.
 
Outro ponto importante dos resultados é a ampliação da participação dos municípios do interior, é uma característica que o Beto, nosso secretário, gosta de falar bastante é que a Secretaria de Cultura era uma Secretaria de Estado de Cuiabá, então, a gente ficava muito focado em atender as demandas da capital. Lógico, não desmerecendo a importância da capital, mas a gente fala de uma secretaria de Estado, então, era fundamental que chegássemos aos municípios do interior e temos feito este trabalho. E percebemos que a única forma de chegar aos municípios do interior era tendo acesso aos gestores municipais. Então, fizemos várias reuniões com os gestores municipais de cultura, capacitando esses gestores para o atendimento das inscrições da Aldir Blanc, a gente fez o passo a passo da inscrição, para que esses gestores fossem os nossos braços no interior.
 
E saímos de 26 municípios participando no primeiro edital da secretaria para 47 participando na Aldir Blanc, eu ainda acho que era um resultado pequeno. Só para você ter ideia, no Movimentar, tem 95 municípios participando. A gente tem um crescimento, né? Vinte e seis no edital do Festival Cultura em Casa, 47 municípios da Aldir Blanc e 95 municípios participando do Movimentar. A gente tá vindo aí numa crescente que é exatamente na perspectiva de formar os gestores municipais.
 
Entendendo isso, também lançamos este ano o curso de Gestão Pública para Cultura, voltado pros municípios. Durante todo esse período junto com a associação, que é a Ação Cultural, que está nos apoiando, e ele tem capacitado gestores municipais para a criação dos seus planos, suas leis municipais. Porque para mim, uma coisa que eu sempre imaginei é que a gente só queria uma política estadual fortalecida se fortalecidos estivessem os municípios. Foi por onde a gente começou nossa história aqui. E está dando resultado.
 
Outro dado bem importante também é ampliação da participação de mulheres nos nossos editais. No Festival Cultura em Casa, que foi o edital anterior ao Aldir Blanc, tivemos a participação, dentre os selecionados, de 70% de homens, 30% eram mulheres. E aquilo me incomodou muito. Que marcou muito a minha cabeça: temos que mudar essa história. Então, na Aldir Blanc, criamos um ponto que incentiva a participação de empreendedores culturais femininas. Inclusive ampliando o conceito feminino, né? A gente também pensava em mulheres trans, travestis... então conseguimos ampliar, sair de 30% no edital anterior para 54% de participação de mulheres. Equilibramos a balança da participação, criando mais equidade.
 
Outro formato também que pensamos duramente, que eu acho que é uma das coisas também que não podemos mais retroagir, que é a participação de artistas e trabalhadores da cultura com deficiência. A gente tenta, dá até bastante ideia, para que todos os nossos projetos precisam ter acessibilidade. A gente esquece que os trabalhadores também precisam trabalhar, tem artistas com deficiência, tem trabalhadores da cultura com deficiência, também pontuamos aqueles projetos que contratavam, para a realização das ações, pessoas com deficiência. E, dos projetos aprovados, 21,40% têm participação de pessoas deficiência.
 
Outra coisa também é a participação de comunidades que foram invisibilizadas da história da cultura, especialmente os povos indígenas e comunidades tradicionais, que sempre foram elementos de fotos, enfim, do que eu chamo de políticas de magazine: você vai lá na comunidade indígena, tira uma foto com ele e, pronto, acha que isso é suficiente para criar uma política de incentivo à cultura das comunidades. A gente não queria isso, então tivemos cotas específicas. Então, 30 projetos eram para povos de comunidades tradicionais. Não limitados a esses 30, mas 30 projetos eram garantidos para as suas comunidades.
 
Doze projetos para as culturas urbanas, cultura Hip-hop, juventude, as práticas urbanas, dez projetos garantidos para a comunidade LGBT, 15 projetos das culturas negras e de matrizes africanas, teve o povo de terreiro participando e também projetos de áreas técnicas/backstage. Então, de certa forma, a gente muda um pouco essa lógica de que a cultura é só do mundo das artes, eu acho que isso também é uma das coisas que a gente tem desconstruído aqui.
 
A Cultura está presente no cotidiano das pessoas. Se cultura é cotidiana, então ela não é só arte, ela também é o indígena vir aqui entregar um projeto, por exemplo, para comprar um barco, porque o barco é principal instrumento de travessia do rio para que tenha acesso à saúde e educação e continue mantendo viva ali na comunidade onde está inserido. Se não for dessa forma, aquela cultura provavelmente vai virar outra e vai se perder ao longo da História.
 
Então, temos tentado desconstruir um pouco também essa ideia de que Cultura é só teatro, dança, circo, música, cinema. Cultura também é fazer comida, cultura também é cuidar dos filhos. Cultura também é amamentar. Cultura também é pintar o corpo, é guerrear, também é lutar pelo seu território... Começamos a pensar a Cultura em outros lugares, que não só aquele que... isso exige algumas coisas, né? Que própria máquina nossa não dá conta hoje.
 
Eu lembro de dois episódios muito interessantes: o primeiro era um indígena que não tinha como prestar conta do projeto, porque... O que ele queria? Ele tinha que pagar o barqueiro, para poder colocar gasolina no barco, para poder atravessar o rio para coletar a semente para fazer o artesanato, para produzir a peça para fazer a feira. Como ele ia prestar conta dessa travessia do rio? Não tem como emitir nota fiscal do barqueiro. Tenta pensar também que a própria máquina ainda não está preparada para pensar cultura em outros lugares.
 
Inclusive, um dos nossos desafios aqui para frente é criar novos marcos regulatórios para cultura, né? As leis da Cultura, tanto o fundo, como as nossas legislações precisam entender algumas características que são inerentes às certas culturas que não falem sobre o mundo urbano branco, o não indígena, mas o indígena tem outros lugares, então, estamos trabalhando bastante nisso.
 
Outro episódio que eu acho fantástico é isso que eu acabei contando um pedacinho, que foi um projeto que proponente queria comprar um barco. Era só isso o projeto inteiro. Falava sobre a comunidade, sobre as tradições deles e eles queriam comprar um barco, porque era a única forma de eles atravessarem o rio para levar as crianças da comunidade para estudar na escola, que fica do outro lado. Muita gente disse: 'mas isso não é cultura'. Porque a chave do pensamento da cultura é a 'arte' e fica nessa busca do objeto, do produto... e Cultura não está só no produto palpável, ela também é prática, ela também é vivência. Então tivemos que trabalhar aqui na equipe um pouco sobre isso. Tentar entender que cultura não é só aquilo que eu acho que seja cultura, mas cultura é aquilo que é importante para o outro. E, se a comunidade indígena entende que aquilo é a sua cultura, a sua prática, não somos nós, não indígenas, que vamos dizer o que é e o que não é. A gente tem feito bastante trabalho para desconstruir essa ideia.
 
Também ampliamos a participação do povo preto e pardo, a gente teve a participação de 55% de proponentes pretos e pardos. No Festival Cultura em Casa, esse número era 28%. Ampliamos, intensificando a participação dessas pessoas, porque sabemos que são pessoas tradicionalmente mais vulneráveis... Esse é o nosso trabalho, como eu falei no começo, o edital, para mim, é um instrumento de intervenção, de correção, de tentar equilibrar a balança do acesso, tentar equilibrar as diferenças e, junto com isso, ofertar para a população experiências culturais diferentes, que possam, de fato, transformar a vida dessas pessoas e ampliar os horizontes. Então, quando temps acesso à diversidade da cultura, à multiplicidade, conseguimos compreender que o mundo é muito maior do que aquilo que temos acesso com a indústria cultural, com o que eu vejo na tevê. Ela é muito maior e muito mais ampla e é esse o nosso papel aqui: desenvolver pessoas. E eu acredito que o desenvolvimento parte da diferença, da compreensão da diferença e do festejo e da comemoração das diferenças e da potência da diversidade da Cultura.
 
Leiagora - Mato Grosso e o restante do Brasil passam por um momento de retomada das ocupações dos espaços físicos. O Cine Teatro Cuiabá, equipamento cultural do Executivo estadual, já recebe espetáculos presenciais e, do ponto de vista dos pontos privados, bares e restaurantes já oferecem pequenos shows e música ao vivo. Qual a sua avaliação do ponto de vista dos trabalhadores da Cultura e dos cuidados sanitários?
 
Jan Moura - Precisamos entender que... eu falo do lado de cá, como gestor público... o impacto foi muito grande, como eu falei, a gente talvez leve mais de dez anos para recuperar todas as perdas. E é óbvio que talvez não seja ainda o momento ideal ter grandes aglomerações - e não vamos ter... Eu acho que a retomada precisa ser feita, com todos os cuidados que precisam ser tomados... é possível, eu acredito, já começar a ensaiar pequenas ações com todo o cuidado do mundo, tentando limitar o acesso, tentar usar todos os recursos de higiene, que são máscara, álcool em gel, na entrada, na saída, em todo o momento, distanciamento nos espaços...
 
Acredito que também já temos tido algumas experiências positivas, o Cine Teatro, como você falou, ele já tem retomado isso com todo cuidado - e somos muito criteriosos em relação a isso... seguimos o decreto à risca, o decreto fala em 30% da capacidade e a gente não passa disso. Então, dá um pouco de esperança, né, no sentido de que a pandemia está passando, a vacina está chegando e nós, aos poucos, estamos retomando este projeto, porque, primeiro, para a sociedade ter outras experiências, aprendemos a consumir produtos virtualmente, mas sabemos que a potência da presença, da experiência cultural, da vibração dos corpos, ela não consegue ser substituída pela experiência virtual.
 
Aos poucos, vamos conseguir retomar, sim, e é importante retomar, mas sem esquecer que ainda estamos em pandemia, estamos vivendo um momento crítico da saúde, então, todo cuidado sempre vai ser muito pouco, mas acredito que, tomando esses cuidados, aos poucos a gente vai voltando... acredito que as pessoas com mais idade devem ainda permanecer nas suas casas, tentar evitar esses espaços de aglomeração, mas aquele que tem um pouquinho mais de cuidado, já se vacinou e - sem perder de vista a necessidade de usar máscara e de continuar com todos os cuidados - ter acesso a essas experiências. É importante, inclusive, para a nossa autoestima, tão impactada também.
 
Leiagora - Você é pesquisador das Culturas Contemporâneas, é ator e produtor cultural. Dentre tantas opções de linguagens que surgiram desde março do ano passado, para driblar a pandemia e atender ao isolamento social, o que você acredita que fica e qual é o futuro?
 
Jan Moura - Eu acho que vamos viver um mundo misto, acho que todos os eventos terão a experiência da presença e a experiência da não presença, ou seja, todos vão ter transmissão ao vivo. É um caminho sem volta, a gente oferece a experiência da presença ou não, porque entendemos que a experiência virtual é democrática, que dá mais acesso, apesar da internet, acesso ao Youtube... eu acho que isso é importante, quando pensamos na perspectiva do acesso. Já nasceram outras tecnologias artísticas, como o teatro digital, o cinema ao vivo, que as pessoas fazem em casa, e isso é muito interessante. Eu falo isso como pesquisador: precisávamos de alguma marca que encerrasse o que vivemos, que era a pós-modernidade, essa coisa da contemporaneidade, o hibridismo das obra de arte, essa perspectiva de desfronteirização das artes... num espetáculo de teatro, você não tem só o teatro, você tem música, você tem audiovisual, tem transmissão, então tem a experiência do momento e eu acho que isso é outra coisa que a gente está vivendo e, se a gente precisava de alguma marca - e essa marca talvez não seja legal de ter tido, mas a pandemia nos obrigou a criar outras possibilidades.
 
E agora temos uma nova fase das artes, que talvez a gente ainda não compreenda muito bem, mas que acentua ainda mais essa hibridação dos elementos artísticos. O teatro não é só um teatro da presença, nem a presença é apenas aquela do corpo a corpo, a gente talvez tenha outras experiências da presença. Eu tenho assistido bastante espetáculo on-line, então, alguns me impactam bastante, como em uma experiência presencial, outros nem tanto, mas talvez seja outro ritmo de experiência, uma experiência dada para o corpo, hoje, uma outra vida, uma outra forma de experienciar e ter afeto por uma obra de arte. Talvez a gente precise estudar mais sobre isso: a arte pós-pandemia está nascendo agora e eu acho que essa é uma arte em que a perspectiva de separação entre as linguagens artísticas já caiu por terra. Um teatro filmado, transmitido, é teatro? É cinema? Não importa mais o que ele é. Importa mais o que ele causa ou o que ele pode causar. Talvez a gente mude um pouco essa lógica dos segmentos e passe a pensar como experiências, sem muito a divisão do que é do que não é. Talvez seja essa a arte pós-pandêmica.
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