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Notícias / Entrevista da Semana

05/12/2021 às 08:00

Diversidade sexual: coordenadora de ONG fala sobre preconceito e luta

Mato Grosso é considerado um estado violento e conservador pela população LGBTQIA+

Denise Soares

Diversidade sexual: coordenadora de ONG fala sobre preconceito e luta

Josi Marconi, fundadora e coordenadora do grupo Mães Pela Diversidade

Foto: Pedro Ivo

Na semana em que deputados mato-grossenses rejeitaram a criação de um conselho estadual para tratar sobre questões importantes para a população LGBTQIA+, o movimento se une e mostra a força que tem.
 
Uma das figuras presentes na luta dos direitos é Josi Marconi, fundadora e coordenadora do grupo Mães Pela Diversidade, que acolhe e auxilia famílias com filhos LGBTQIA+.
 
Josi falou sobre o conservadorismo em Mato Grosso, a origem do preconceito e como as famílias podem ajudar quem precisa do apoio em questão. A necessidade das políticas públicas para o público LGBTQIA+ também está presente na discussão.
 
Sobre isso, o Leiagora entrevistou Josi.
 
Confira a entrevista na íntegra:
 
Leiagora - Qual o trabalho das Mães pela Diversidade?
 
Josi Marconi - Mães pela Diversidade é uma ONG nacional presente em quase todos os estados. Nós somos mães e pais de pessoas LGBTs. Nosso trabalho principal é acolher mães e pais que acabaram de ter a notícia de que tem uma filha (o) LGBT e que ficam sem saber o que fazer, ficam sem chão ou desesperados. Muitos brigam com os filhos, batem e pegam o celular por total ignorância, na maioria das vezes. O que a gente faz: a gente acolhe esses pais e mães que nos procuram, dá informação, divide as nossas dores, faz como se fosse uma catarse, sempre chega uma mãe ou pai novo a gente chora.
 
Leiagora - E como é essa relação com as famílias?
 
Josi Marconi - É uma reunião de muito amor e acolhimento. Sempre com companheirismo. A gente fica mais forte. Cada elo que aumenta essa corrente, a gente vai ficando mais forte. Esse é o nosso principal trabalho. Mas aí a gente descobriu que só isso não bastava. Além de acolher os pais e mães, também segurar nas mãos dos nossos filhos e filhas. O nosso lema é: tire seu preconceito do caminho que nós vamos passar com o nosso amor. Então, a gente precisa fazer esse trabalho com a sociedade através das políticas públicas para salvaguardar a dignidade e a vida dos nossos filhos.
 
Leiagora - O que é a homotransfobia e quando ela começa?

Josi Marconi - A homotransfobia é uma rejeição ao que não se enquadra na heteronormatividade, que é o pressuposto de que toda pessoa que nasce é heterossexual, que tem essa orientação heterossexual. Ninguém pergunta a uma pessoa: você é heterossexual? Ninguém faz essa pergunta, porque já se tem esse pressuposto na sociedade que todas as pessoas são heterossexuais. Então, quando uma pessoa sai de dentro desse padrão heterossexual, que tem uma orientação ou identidade de gênero diferente, causa fobia. Causa medo e repulsa. Isso é a homotransfobia. Ela começa muitas vezes dentro de casa, na maioria das escolas, nas igrejas, no trabalho. Nas piadas do bar, nos xingamentos de trânsito, quando alguém passa e diz ‘ô, seu viado!’. Essa homotransfobia já está na sociedade, infelizmente, naturalizada. As pessoas acham que fazer uma piada homotransfóbica não vai machucar a pessoa. Vai! Porque ela vai se sentir menor, vai se sentir excluída. São coisas que, para algumas pessoas é pequeno, mas para quem está sofrendo é muito.
 
Leiagora - E você, passou por isso em casa?
 
Josi Marconi - Sim. Um exemplo: a minha filha é lésbica. E ela estudava em um colégio religioso grande aqui de Mato Grosso. Quando ela 'saiu do armário', os colegas de turma não queriam mais fazer trabalhos de disciplina com ela. A professora pedia para formar os grupos e ninguém queria formar grupo com ela. Isso é uma exclusão, a pessoa já começa a sofrer ali. Essa homotransfobia está em todos os lugares, nas pequenas coisas, nos gestos sutis até os assassinatos. Mato Grosso é um dos estados que mais mata homossexuais e travestis no Brasil e no mundo. O Brasil é o país que mais acessa sites eróticos com pessoas transexuais.

Olha os opostos, são coisas que não se encaixam. O país que mais mata é o país que mais consome sites de pornografia transexual. Como pode? Isso é uma hipocrisia muito grande. A gente lamenta e sofre cada vez que um dos nossos filhos sofre, é xingado, espancado e assassinado. Quando uma família 'sai do armário', acaba brigando com tio, sogro, colega e até chefe. É um mundo muito grande, é um conjunto de pessoas que a gente acaba esbarrando. Não é simplesmente só a pessoa. Muita gente não aceita. Quando eu fundei o Mães, muita gente parou de falar comigo. Em compensação, muita gente se aproximou. Nós não queremos acabar com a família, nós somos família. Isso é importante que a sociedade entenda.
 
Leiagora - O conservadorismo em Mato Grosso prejudica de que maneira a conquista dos direitos?
 
Josi Marconi - O conservadorismo vem tirando direitos já conquistados de muitos grupos vulneráveis. Mato Grosso não é só um estado violento para LGBTs, é um lugar muito violento para as mulheres. Eu sou colaboradora do Conselho Estadual de Direitos da Mulher. A gente vê como esse estado machista, branco, conservador, hétero e patriarcal vem matando mulheres e vem matando LGBTs. O conservadorismo não está aparecendo agora. Eles têm um projeto que começou há mais de 10 anos e vem fazendo esse trabalho na política e nas igrejas fundamentalistas.

Há igrejas que entendem o que é o amor e o que é ser cristão, ou buda ou outro profeta. As igrejas dos conservadores e fundamentalistas pregam o ódio e têm um projeto de sociedade que já vem sendo construído. Começou com prefeitos, deputados e vem se alastrando. Hoje nós temos uma Câmara de Vereadores com apenas duas mulheres. Temos uma Assembleia Legislativa com apenas uma mulher. E nós temos uma Comissão de Direitos Humanos da Assembleia que só tem homens conservadores e foi essa comissão que disse não à criação do conselho, sendo que todas as outras populações vulneráveis têm, e a população LGBT não. O único conselho que deu toda essa repercussão foi o do LGBT. O conservadorismo vem criando uma sociedade exclusiva. Exclusiva para ele e exclusiva no sentido de excluir as minorias que eles não aceitam.
 
Leiagora - Qual maior dificuldade enfrentada pelos LGBTs no estado?
 
Josi Marconi - Temos mães de filhos que não conseguem fazer troca de nome e principalmente dificuldade para acessar o sistema de saúde. Veja como é complicado: se eu sou uma mulher trans, tenho aparelho genital masculino. Então preciso acessar um proctologista. Se eu tenho o meu nome já retificado como de mulher e todos os documentos estão retificados com o nome de mulher, eu não consigo acessar um proctologista no SUS. Mulher não acessa proctologista.

E o inverso também: se eu sou um homem trans, e tenho um aparelho genital feminino e todos os meus documentos, inclusive a certidão de nascimento, já estão retificados com o nome masculino, eu não consigo acessar um ginecologista. Olha a situação. É uma das dificuldades. E se você chega em uma unidade, os atendentes não querem te atender com o seu nome social. Se eles estão vendo um homem, não querem atender, mesmo que você precise de um ginecologista. Se você é lésbica e vai até um ginecologista, algumas não toleram ser penetradas, e quando a mulher vai no ginecologista e vai fazer os exames, aquilo é muito incômodo, é desagradável. Não existe uma capacitação para esses profissionais atenderem essas demandas. São muito específicas. Então, essas pessoas deixam de ir ao médico. Morrem de câncer de próstata ou câncer de útero. Tem milhões de infecções e inflamações e não vão ao médico porque é muito humilhante. Não é um privilégio.
 
Leiagora - Quais casos mais marcantes vocês acompanharam?
 
Josi Marconi - Certa vez fiquei quase um dia inteiro no telefone com um rapaz que precisava de ajuda. Mais tarde fui em um restaurante e entrou um rapaz, uma moça e uma criança. E ele veio falar comigo, perguntou como eu estava e eles foram se sentar em outra mesa. Uma das pessoas que estava comigo perguntou quem era e eu não sabia. E quando eu fui ao banheiro essa pessoa me segurou no braço e disse ‘mãe, eu quero te apresentar a minha prima’. E virou para essa pessoa e disse [se referindo a Josi] ‘essa daqui é a responsável por eu não suicidar. Ela me acolheu, me ouviu e ficou conversando comigo’. E depois ele foi para o psicólogo. Voltei para o banheiro e comecei a chorar. Eu só o conhecia por telefone e ele me reconheceu. É um trabalho cansativo e desgastante e não recebemos um tostão por isso.
 
Leiagora - Na luta LGBT, o que há para se comemorar e o que há para melhorar?
 
Josi Marconi - Podemos comemorar que a transfobia é crime e os LGBTs conseguem usar o nome social. Em outros lugares há o ambulatório transexualizador que é uma briga que temos desde 2017 em Cuiabá. Há um decreto do Ministério da Saúde que diz que todas as capitais têm que ter um ambulatório transexualizador e a gente não consegue implantar isso aqui.
 
Leiagora - Como funciona esse ambulatório?
 
Josi Marconi - Nele as pessoas trans vão fazer a hormonização. Não é nem a cirurgia. A mulher trans toma o hormônio feminino e o homem trans vai tomar o hormônio masculino para fazer as modificações das características sexuais secundárias. Dessa forma, as mulheres ficam com a voz mais fina e as feições suavizadas. E os homens conseguem pelo no rosto, no peito e a voz engrossa. Assim, ficam com essas características mais visíveis. Hoje eles tomam pelo mercado negro, as meninas usam silicone industrial. É uma mutilação. São vidas que estão em jogo. Quando as pessoas trans usam hormônio sem receita médica, tomam dosagens que, às vezes, são muito acima do que o necessário e isso prejudica rins, fígado e tudo. O ambulatório vem para salvar vidas. Já pedimos para o Ministério Público, mas é muito difícil as coisas andarem em Mato Grosso. Se a comissão da Assembleia é conservadora, como que a gente vai andar aqui nesse estado?
 
Leiagora - Na ALMT, há semanas vem se discutindo a questão da criação do Conselho LGBTQIA+. E não foi aprovado. Na sua opinião, por que não foi aprovado? Como o grupo reagiu a isso e o que pode ser feito daqui para frente?
 
Josi Marconi - Eu chorei muito na Assembleia e gritei perguntando quantos filhos precisam ser xingados, levar surra e serem assassinados para esses deputados entenderem que políticas públicas são importantes para a população LGBT e que ela é vulnerável. A gente vai fazer de tudo e o melhor que podemos fazer é votar bem na próxima eleição. Votar em pessoas LGBTs, para que tenham representantes LGBTs, que tenham negros falando por negros, que tenham mulheres falando por mulheres. Não pode ter comissões de direitos humanos só representadas por homens, pastores, brancos, héteros e do agronegócio. Cada um tem que ser representado no seu segmento. Não foi aprovado por preconceito, falta do que fazer e palanque.
 
Leiagora - Que conselho você daria para uma mãe/pai que descobriu que o filho é gay? Como vencer o preconceito?
 
Josi Marconi - O que acaba com a família não é o LGBT, é a falta de respeito e a falta de amor. A coisa principal é você lembrar do amor por esse filho (a). O amor pode vencer o preconceito quando a gente coloca ele acima de tudo. E se informar. A mãe/pai de um LGBT, quando o filho sai para se divertir, tem preocupação dupla se alguém vai olhar para o nosso filho e dizer ‘é um LGBT, vou bater, merece apanhar’. Então temos essa preocupação, não sabemos se eles voltam. Não sabemos se no trabalho eles vão sofrer piadas, se vão sofrer bullying na escola, se vão ser espancados nos banheiros das boates e se vão apanhar quando sai da boate, simplesmente por serem quem são. Pais e mães: tenham amor pelos filhos acima de tudo. Nós queremos que nossos filhos tenham um bom caráter, sejam bons profissionais, sejam generosos, amorosos. Com quem nossos filhos dormem ou por quem eles sentem afeto, isso não é importante.
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