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Notícias / Entrevista da Semana

06/03/2022 às 08:00

As condições das reclusas na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May

A diretora da unidade, Maria Giselma, fala ao Leiagora sobre maternidade, visita, ressocialização e outras temáticas que envolvem o universo das mulheres privadas de liberdade

Priscila Mendes

As condições das reclusas na Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May

Foto: Arquivo pessoal

Mato Grosso mantém seis penitenciárias femininas. Dentre elas, apenas duas funcionam acima da capacidade - a de Colíder e a de Nortelândia, segundo dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp-MT). As três maiores são justamente as que funcionam abaixo da capacidade: as unidades de Cáceres, Rondonópolis e Cuiabá. Ainda há a cadeia feminina de Nova Xavantina, que está fechada enquanto passa por reforma.

A maior delas, a Penitenciária Feminina Ana Maria do Couto May, em Cuiabá, tem capacidade para 302 reclusas e mantém, atualmente, 239, ainda conforme dados da Sesp.

Ana Maria do Couto May, a cuiabana homenageada, teve vida breve (apenas 46 anos), mas foi pioneira nas diversas áreas em que atuou. Foi esportista, professora, política, jornalista, advogada e promotora da Justiça Militar.

Na Semana da Mulher, o Leiagora conversa com a diretora da penitenciária feminina de Cuiabá, Maria Giselma Ferreira da Silva, para refletir sobre algumas condições da mulher na sociedade, sob a perspectiva das que estão privadas de liberdade, por terem cometido crimes.

Maria Giselma é formada em Letras e atua no Sistema Penitenciário desde 2005, após concurso. Inicialmente em unidades masculinas, desde 2015 atua em cadeias femininas e foi convidada para gerir a Ana Maria do Couto em 2018.


A partir de uma perspectiva bem distante da realidade dos presídios masculinos - desde população carcerária a demandas internas, nesta entrevista, foi falado sobre ressocialização de mulheres, família, caminhos que as levaram para o crime e muito mais.

Confira a entrevista na íntegra:


Leiagora - Quais são os principais crimes cometidos pelas reclusas e quais as causas desses crimes, na sua avaliação?

Maria Giselma - A maioria das detidas aqui hoje está por tráfico de drogas. É quase que 80%. E os motivos, na minha concepção, que as levaram a cometer esse tipo de crime... elas geralmente foram influenciadas pelos parceiros, pelas amizades... questões financeiras também. Muitas alegavam: 'ah, eu estava passando fome, eu estava precisando, era uma coisa que eu ia só fazer uma vez, não ia fazer mais'. E acaba que se embrenharam aí no mundo do crime. É um caminho que, depois que entra, pra sair, é complicado.

Leiagora - Você confirma que existe uma porcentagem delas que tenha sido presa tentando levar droga para o companheiro no presídio masculino?

Maria Giselma - Sim, a maioria delas que está aqui presa, o filho está numa outra penitenciária ou o marido está aqui de frente pra elas aqui no Masculino [Penitenciária Central do Estado]... Então, infelizmente tem, sim, uma porcentagem boa delas que foi presa tentando levar droga para esse homem, que foi flagrada na revista, nos pertences...

Leiagora - Por que elas levariam droga para o companheiro ou para o filho correndo esse risco?

Maria Giselma - Infelizmente - não sei se essa é uma justificativa plausível, mas muitas ainda agem errado em nome do amor. Sabe aquela história de 'se você me ama, você prova'? 'Se você não fizer tal coisa, eu vou morrer aqui dentro', 'se você não trouxer pra mim, vai me acontecer o pior', entendeu? É sempre coisas nesse tipo.

Leiagora - Quais seriam os outros crimes? Os outros 20%?

Maria Giselma - Homicídio, latrocínio, furto, crime contra criança, contra idoso...

Leiagora - Existem casos em que o homicídio seria depois de ela ter sido vítima de violência contra a mulher?

Maria Giselma - Tive uma recuperanda aqui que disse que matou por conta disso, aliás, duas. Matou por conta de abuso, porque sofria ameaças, o ex-marido ameaçando, aquela coisa: 'ou vive comigo ou não vive com ninguém' e ela, pra se defender, ela matou, não foi algo pensado, não foi nada premeditado, foi ali no calor do medo de morrer.

Leiagora - As mulheres costumam visitar os filhos e os companheiros nas penitenciárias masculinas. As reclusas recebem visitas ou existe uma solidão ou um panorama de abandono? 

Maria Giselma - Solidão e abandono são o que mais faz parte da vida delas aqui dentro. O homem, quando ele vem preso, se ele não tem uma esposa, logo, logo ele arruma. É a irmã do parceiro de cela... Geralmente, quando a mulher dele está presa aqui também, é comum ele arrumar outra. A partir daí, elas já são abandonadas aqui dentro. Só que a mulher que está aqui presa e com o marido lá do outro lado, ela se mantém fiel. E se você pega aí o dia de visita do Masculino, numa cadeia aí de mais ou menos 1500 homens, você pode contar 300, 400 visitas. Tem que ser dividido em dias, porque é impossível abranger todos num dia só. Aqui, pasmem! Eu tenho visita só aos domingos e eu conto pra você no dedo: três, quatro visitas de duzentas e poucas mulheres. Quem são elas que estão visitando: as mães! Você acredita? É terrível, é triste de ver.

Leiagora - Existe na penitenciária atendimento das demandas exclusivamente femininas, como Saúde da Mulher, higiene menstrual, que seria distribuição de absorvente? A unidade enfrenta algum tipo de déficit?

Maria Giselma - Não. Graças a Deus, nós não temos esse problema. Porque o estado de Mato Grosso investe bastante nos presídios, investe nos insumos. Sem contar que a gente sempre tem umas parcerias muito boas da sociedade em si. A gente consegue, sim! Neste Mês da Mulher, a gente já está entrando com a Saúde da Mulher, exame do papanicolau, o exame de mama... Absorvente, a gente não deixa faltar em hipótese alguma. Quando está acabando e o Estado ainda não entrou com licitação, a gente tem parcerias, a gente procura dar uma assistência. A gente às vezes não consegue suprir toda a necessidade, como produto de cabelo, uma coisa assim nesse sentido. Mas a gente tem buscado parcerias e a gente tem encontrado resposta.

Leiagora - Como é a rotina das detentas que são mães?

Maria Giselma - Aqui dentro, nós não temos crianças. Aqui somente as mães. Não tem como eu te dar um parâmetro, porque os filhos estão em casa, em abrigos. E ela só tem contato com os filhos através de uma videochamada ou carta e às vezes uma mãe ou outra traz a criança... a criança não pode entrar, no momento, por conta dessa pandemia, mas a gente tem possibilitado pra elas uma visita social, da família trazer a criança pra ver.

Leiagora - Como funciona essa videochamada?

Maria Giselma - Através lá do WhatsApp ou através de links. Pelo teleone funcional aqui da assistência social. Porém a demanda é muita, então só o celular da nossa assistência social funcional é inviável. Então, eu acabo cedendo também o meu WhatsApp.

Leiagora - E como funciona o caso de detentas que foram presas gestantes? Qual é o procedimento?

Maria Giselma - Aqui nós temos um raio denominado Maternidade. Atualmente, eu tenho quatro recuperandas gestantes. A mais nova de gestação está com dois meses e a mais velha está com sete meses. Porém, nosso Tribunal de Justiça, o Ministério Público, são muito cuidadosos no sentido de fazer valer a lei. Então, as moças gestantes, cujo crime cabe numa prisão domiciliar, elas são todas inseridas nesse mandato de prisão: vai cumprir prisão domiciliar para ter o bebê em casa. Nesses quatro anos em que estou aqui [enquanto diretora], eu só tive duas recuperandas que tiveram bebê aqui dentro. A gente tem um certo conforto... 'Ah, a Justiça não vai soltar, vai ter que ficar aqui por conta do crime', a gente tem conforto pra abrigar essa criança, né? Porque é um raio tranquilo, específico só pra elas, com berço, com banheiro, com a coisa bem arrumadinha. A gente não quer, jamais, ter um bebê lá dentro, como a gente já presenciou, por poucos dias, mas teve que ficar, em virtude da prisão ter sido perto do parto e acabou ficando aqui uma semana. É muito triste você 'bater a grade' e saber que ali dentro tem uma criança. É terrível. Graças a Deus, a nossa Justiça está bastante cuidadosa nesse sentido. Essas crianças ficaram até sair a [prisão] domiciliar da mãe. Uma, me parece que saiu com nove dias após o parto e a outra ficou dois, três dias.

Leiagora - Como é o acompanhamento dos processos delas, de tempo, de pena, de progressão?

Maria Giselma - Nesse sentido, eu te falo que nós somos sortudos, porque as sentenciadas aqui são todas geridas pela Segunda Vara Criminal, do doutor Geraldo Fidelis, e ele tem equipe lá que está atenta ao tempo e também me dá a liberdade [para olhar o processo]. 'Esta aqui está perto de progredir [de pena]'... Sem contar que a gente também tem uma Defensoria Pública muito atuante! Nesse quesito, a gente tenta manter a calma aqui, porque elas estão bem assistidas.

Leiagora - Como é inserida a comunidade LGBTQIA+ na penitenciária? Vocês recebem mulheres trans?

Maria Giselma - Nós temos uma ala pronta pra uso. Até o momento, não recebemos nenhuma mulher trans, nenhuma. Nós temos lésbicas, porém elas convivem normalmente com as demais. Então, não há necessidade de ficarem separadas [na ala específica]. Não recebemos ninguém ainda nesse sentido que pudesse falar 'esta precisa ficar isolada'. Mas, caso haja, caso recebamos, a gente tem condição de mantê-la numa ala separada. Porém, o universo da mulher é mais brando e elas são mais compreensivas.

Leiagora - Para vocês receberem mulheres trans, só depois que o nome social dela já tenha sido documentado? Enquanto isso, a mulher trans estaria presa em uma ala masculina, se o registro dela ainda não tiver sido alterado?

Maria Giselma - Exato, exato.

Leiagora - Quais são as iniciativas de ressocialização? Cursos, trabalho, artesanato...

Maria Giselma - Você tocou na parte que eu mais amo. Nós temos N cursos em andamento e temos N cursos já em pauta, pra gente realizar. Atualmente, a penitenciária está contando com quatro ou cinco projetos em andamento. Além da escola de ensino regular - de Ensino Fundamental, nós temos também o projeto Reconstruindo Sonhos, que é uma idealização da nossa grande e magnífica promotora [de Justiça], doutora Josane [Fátima de Carvalho Guariente], uma parceirona aqui da unidade, e esse projeto vem em busca de profissionalizar essas meninas pra, quando saírem, saírem melhores do que entraram. Saírem refeitas, com profissão... É um projeto composto por várias oficinas. E agora, a gente vai começar a Oficina de Jardinagem com elas. O Reconstruindo Sonhos é um grande projeto. Dentro dele, vamos ter vários outros miniprojetos de profissionalização. No momento, é a jardinagem. Terminando a jardinagem, a gente avalia outro tema. Temos também o projeto Inventário Lilás, que é pra falar do íntimo da mulher, dos anseios da mulher, dos sonhos, dos desejos, dos traumas, pra levantar a autoestima dela... palestras. Temos também Telharte, que é decoração em telhas, temos uma mini fábrica de pufes de pneu. Vamos começar a oficina de informática. Faculdade também já está em vista pra este mês [de março]. Temos aula de teatro todas as sextas-feiras... Tudo aqui dentro. Tirando esses, já está no papel também: o Ministério Público e o Conselho da Comunidade [da Execução Penal de Cuiabá] vão nos auxiliar com a verba que a gente necessita, que nós vamos iniciar uma fábrica de chinelos tipo Havaianas e uma horta hidropônica.

Leiagora - Dessas atividades, todas elas permitem remissão de pena?

Maria Giselma - Todas elas com remissão de pena. Quando é trabalho, a cada três dias, é um dia a menos na pena. Quando é escola, a cada 12 horas, elas reduzem um dia.

Fora isso, nós também temos uma oficina de costura que funciona diariamente, graças a Deus, a gente tem feito muito trabalho de doação, a gente tem costurado lençóis, feito reparos pro Hospital de Câncer, a gente costura também uniformes pra outras unidades, o nosso próprio uniforme é feito aqui... A proposta é que ela adquira a profissão dela e que ela tome gosto pelo trabalho e que saiba que não há outro caminho de se obter as coisas que não seja pelo trabalho lícito. E, graças a Deus, elas têm gostado. Eu tenho também o projeto 'extra-muro', com 37 mulheres sentenciadas que já atingiram 1/6 da pena e elas trabalham na rua e saem cedo, com a tornozeleira eletrônica, saem de manhã e retornam à tarde. Trinta delas trabalham na limpeza urbana, pela Prefeitura de Cuiabá, cinco delas trabalham na Secretaria de Justiça e duas delas, na Fundação Nova Chance. São todas remuneradas, recebem através do Conselho de Execução Penal, o valor é depositado na conta corrente delas, todo mês ela pode tirar uma parte pra ela usar e o restante fica lá pra quando sair ter alguma coisa, algum dinheirinho pra recomeçar. É o dinheiro também que mandam pra família, manda pros filhos.

Leiagora - As atividades extra-muro são as atividades remuneradas? Todos os outros são focados apenas na remissão de pena?

Maria Giselma - Isso, aí são internos, temos curso de Cabeleireiro, personalização de telhas, Reconstruindo Sonhos e Teatro, fora as escolas.
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