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Notícias / Entrevista da Semana

27/03/2022 às 08:00

​Suelme: O contraponto Bororo ao 'novo Mato Grosso' na Assembleia Legislativa

O desafio de ampliar horizontes no debate político resgatar a história de MT de antes do “boom” da soja sem se tornar um guerrilheiro

Jardel P. Arruda

​Suelme: O contraponto Bororo ao 'novo Mato Grosso' na Assembleia Legislativa

Foto: ALMT

Ampliar os horizontes do debate político em Mato Grosso para além do agronegócio, dar voz aos povos tradicionais, aos produtores de micro e pequenas propriedades rurais, resgatar a história estadual de antes do “boom” da soja, sem, no entanto, se tornar um guerrilheiro que faz oposição por oposição. 

Essa tem sido a missão do mestre historiador Suelme Evangelista Fernandes (sem partido), professor da rede estadual de educação pública, na Assembleia Legislativa desde o dia 23 de fevereiro, quando assumiu mandato de deputado estadual na vaga do parlamentar licenciado dr. Eugênio (PSB).

Ou, como ele definiu, “uma contraposição Bororo a uma ideologia dominante, a um conceito hegemônico de desenvolvimento econômico e estratégico”.

Nesse caso, a escolha do termo “Bororo” não se dá somente pela etnia indigena, mas sim de uma maneira filosófica de definir a cosmovisão do mato-grossense que remete Rubens de Mendonça, Lobivar Matos e Silva Freire, ícones da produção intelectual sobre a identidade do povo da Terra de Pascoal Moreira Cabral.

Para todos eles, o encontro do Bororo com o sertanista definiu, em primeiro momento, a alma mato-grossense, o modo de ver o mundo a partir do Pantanal, do Cerrado, de uma produção que vai além das commodities. Um modo de ver Mato Grosso a ser resgatado para junto do “novo Mato Grosso” buscar uma solução a um dos maiores problemas: a desigualdade social e econômica em um estado rico, mas com maior parte da população pobre.


Leiagora - Você deve ficar alguns meses como deputado estadual, qual a marca que você quer deixar nesse período?

Suelme Evangelista - Estou aqui para essas vozes que ninguém quer ouvir e que às vezes não sabem a força que tem.  Nós precisamos construir uma pauta de pensar as populações tradicionais, novas práticas de produção, extrativismos, de pensar nos micro produtores, nos pequenos produtores, essa é uma contraposição Bororo a uma ideologia dominante, a um conceito hegemônico de desenvolvimento econômico e estratégico. 

Vou fazer um novo projeto de uma nova ética de política Bororo. O estado é muito mais do que o agronegócio. Falam da logística, mas nós comemos um mamão que vem de Petrolina, o caminho inverso não pode ser feito? Agricultura familiar é um debate capitalista, sobre diversificação de produção. Isso é pragmatismo puro. É um papo de sustentabilidade econômica. 


Leiagora - Como assim uma contraposição Bororo? É uma pauta étnica?

Suelme Evangelista - Identidade é uma escolha política. É muito mais que a cor da pele. A minha opção de olhar para os negros, de olhar para os indígenas, não é uma pauta etnica. É uma pauta filosófica. É mais ampla.  Quando falo no “pensamento Bororo” eu lembro do Lobivar Matos e do Rubens de Mendonça, que estão dizendo da nossa estética, do nosso modo de ver o mundo, do Pantanal, da produção, da nossa flora, da nossa fauna, da exploração desses meios de sobrevivência, dos manejos. 

É uma forma de ver o mundo, de uma cosmovisão, de etno desenvolvimento. Eu não sei se é isso, mas o que a gente perde de não aprender com isso? Do que nós temos potencial fitoterápico no Cerrado, por exemplo. O que nós perdemos de potencial turístico para a grande soja? 


Leiagora - Ok, mas pode explicar o motivo de Bororo e não tupi-guarani, por exemplo?

Suelme Evangelista - Eles eram índios do Pantanal. Eles saiam de Cuiabá, iam para Poxoréu, Guiratinga, Rondonópolis, essa Região Sul inteira. A teoria da vinda dos Bororo é que eles vieram dos Andes, um sub tronco dos Incas. Estavam fugindo dos espanhóis e esbarraram com os portugueses aqui. Então, esses Bororos, os ‘Coroados’, percorriam o Rio Paraguai, desciam até o Poxoréu, pularam, aí de lá para a bacia hidrográfica do Garças. Eles estavam se afastando da colonização. Então esses nomes, Pogubo Céreu, Guiratinga, Torinxoréu, Cuiabá, são todos nomes Bororos.


Leiagora - Cuiabá é uma palavra Bororo? Nossas raízes são Bororo?

Suelme Evangelista - Ikuya Pá é Bororo. Rio da pesca de arpão, técnica de pesca Bororo. Ele já sabe que fruta o peixe come, em que ponto do rio ele aparece, é uma sabedoria ancestral. Aí o português viu isso e se assustou. Quando o português viu essa técnica aí ele ficou louco. 

O povo Bororo é o povo mais importante que existe. E quando se fala da nossa alma Bororo, o principal poeta de Mato Grosso chama-se Rubens de Mendonça, escritor. Quando começou a Semana de Arte Moderna, lá em 1922, quem a trouxe para cá, um pouco depois, em 1933, e escreveu o manifesto da poesia Bororo, chama-se Lobivar Matos. Ele escreveu o manifesto da poesia Bororo. E o Rubens de Mendonça falava que nós éramos a intelectualidade Bororo. E o Silva Freire também, fazia questão de utilizar palavras Bororo.

Então eles vão fazer, na linha da semana da Arte Moderna, a apologia ao modo de vida Bororo. Dormir em rede, comer peixe com maxixe, comer peixe cozido. Tem coisa mais Bororo do que comer uma mojica de pintado? Aquela branca, o peixe branco, o arroz sem sal, o sal não é da cultura indígena, a mandioca com peixe.

Sérgio Buarque de Holanda, o pai do Chico Buarque, em Monções, fala de como a alma brasileira nasce na fronteira da aproximação do sertanista com o indígena. O sertanista ia captando a cultura, não era uma visão tão somente destrutiva. A nossa colonização vai buscando a sabedoria dos caminhos e dos sertões. 

E a nossa forma de pensar, a nossa cosmovisão, é a visão do pensamento indígena Bororo. 



Leiagora - Então a identidade mato-grossense é Bororo?

Suelme Evangelista - O mato-grossense está sendo. Nós não somos, vamos ser. Nós estamos se fazendo, construindo a nossa identidade regional.

Tem outro Mato Grosso acontecendo. Há uma batalha de memórias, uma disputa de narrativas muito intensa em que esse patrimônio antigo está sendo destruído e se construindo uma nova história tendo marco zero a chegada do agronegócio.

E essa nova invenção desse novo Mato Grosso tem que conviver com os empreendedores do passado. 


Leiagora - Como assim aprender a conviver com o passado? Explica um pouco disso para nós.

Suelme Evangelista - Não é verdade que esse estado foi descoberto por eles. Totó Paes tinha uma usina de cana-de-açúcar que ficava às margens do Rio Cuiabá que exportava açúcar, rapadura e cachaça para América do Sul inteira, especialmente para Buenos Aires e Uruguai. Estou falando de 1912, 1913, Totó Paes foi governador do Estado e era um industrial. Logo após a Revolução Industrial ele estava importando caldeira da Inglaterra e produzindo muito, usando as terras férteis a beira do rio. 

Então, quando o cara vem falar de rodovia, lembro que Marechal Rondon levou linha daqui a Rondônia! Onde estão passando as principais rodovias desse estado foi Rondon que abriu na picada para levar linha de comunicação, porque ninguém ia ficar no meio do mato sem levar uma notícia. Então Rondon é um empreendedor muito maior.

Um dos ramos presentes no Brasão de Mato Grosso é a hévea fina, a outra é a poaia, que era explorada em Barra do Bugres e exportada para Europa. Vendeu muito. E o outro é da erva-mate, no Sul do Estado. Vendia para Argentina e Uruguai. Quem criou foi Joaquim Murtinho, criador da empresa Matte Larangeira, um dos maiores empreendedores da história desse estado e do Brasil, ficou milionário, virou ministro de Finança.


Leiagora - Então você está na ALMT para fazer uma oposição a esse “novo Mato Grosso”, que surgiu com o agro?

Suelme Evangelista - Não, de jeito nenhum. Eu não vou virar guerrilheiro. O que eu quero é ampliar o debate, trazer um novo olhar. Nininho, Blairo, Neri, vieram para cá acreditando no sonho do Eldorado. Um cara que mandava produção agrícola na BR-163 com toda dificuldade, ele foi um cara que acreditou nesse Mato Grosso, né? 

O que a gente precisa agora é reproduzir essas oportunidades que o Estado deu para essa geração para que outras gerações também possam usufruir dessa riqueza, de maneira capitalista. A riqueza, como a chuva, tem que servir para todos. 

Se a gente equalizar os problemas não seremos só referência de riqueza para o Brasil, seremos referência de sustentabilidade para o mundo. De um outro Brasil que deu certo, que não esperou o Estado resolver, que se empreendeu com todas as dificuldades.


Leiagora - Quais problemas e como resolver?

Suelme Evangelista - Problemas? Que Califórnia é essa? Isso aqui é uma Belindia. Bélgica e Índia. Bélgica em 16 municípios, o resto é a pobreza das regiões mais miseráveis na Índia.

Não vou resolver todos os problemas do mundo em três meses, não posso dizer isso. Mas vou construir pautas. Quando assumi a Secretaria de Estado de Agricultura Familiar (Suelme foi secretário de Agricultura Familiar entre 2015 e 2018), queriam acabar com ela. Hoje ela está consolidada e brigam para ver quem será o secretário. Isso chama-se construir pauta.
 
Leiagora - E para encerrar, alguma consideração?

Suelme Evangelista - Que a minha passagem aqui sirva como lição, para pensar não só sobre mim como em outras pessoas que viraram suplentes e que poderiam ter uma oportunidade de trazer coisas novas aqui. E eu sou muito grato ao Eugênio por ter me dado essa oportunidade, porque é uma grandeza isso. 

Foucault disse: Aquele que se apaixona pelo poder logo se torna um autoritário. Quando fui secretário, eu andava no poder como alguém que estava saindo. Mesmo se eu estivesse aqui por quatro anos, eu estaria como se estivesse saindo. E faço o mesmo agora.
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1 comentário

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  • DEUZENI DE SOUZA 27/03/2022 às 00:00

    Que entrevista maravilhosa! É sobre essas pautas que os políticos do nosso Estado deveriam incluir em seus projetos. MT precisa de projetos como esse, Suelme! Vc, como sempre, nos ensinando muito sobre MT! Parabéns

 
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