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Notícias / Entrevista da Semana

24/07/2022 às 08:00

Especialista em direito penal conta como se caracteriza a legítima defesa e em quais casos ela pode ser aplicada

De forma bem didática e com exemplos práticas, Augusto Bouret explica como funciona essa excludente de ilicitude tão comentada atualmente

Paulo Henrique Fanaia

Especialista em direito penal conta como se caracteriza a legítima defesa e em quais casos ela pode ser aplicada

Foto: Leiagora

O dia é 1º de julho de 2022. Por volta das 18h50, um carro em alta velocidade cruza uma avenida e invade a contramão na rua Presidente Arthur Bernardes, no bairro Quilombo, em Cuiabá. Um homem e um mulher descem do veículo e uma confusão tem início em uma distribuidora que fica logo na esquina.
 
Na esquina da distribuidora, o vereador de Cuiabá tenente-coronel Marcos Paccola (Republicanos), ex-oficial do Bope e perito em armas, observa tudo, até o momento em que o homem, Alexandre Miyagawa, um agente do socioeducativo de 41 anos, também conhecido como Japão, saca uma arma e aponta para cima.

Os ânimos se acalmam, Alexandre e a namorada vão em direção ao carro, e neste  momento surge da esquina o vereador com arma em punho e desfere quatro tiros em direção a Alexandre. Três disparos atingem as costas da vítima, o que causa a morte de Japão.
 
A partir daí diversas teorias sobre o crime começam a surgir. A namorada da vítima alega que Paccola o matou a sangue frio. Já o vereador diz que somente atirou porque Alexandre fez menção de que iria atirar na namorada, o que a própria mulher nega. Após a divulgação das imagens de câmeras de segurança que demonstram que Alexandre não apontou a arma para a namorada ou fez menção de se virar para Paccola, o vereador passou a alegar a legítima defesa putativa de terceiro.
 
Desde então, o tema sobre a legítima defesa, as obrigações de um militar e as circunstâncias que podem livrar Paccola de eventualmente ser preso passaram a fazer parte do dia a dia dos leitores do Leiagora.

É comum vermos nos noticiários casos de legítima defesa, mas o que é a tal legítima defesa putativa alegada pelo vereador? Como ela se caracteriza? Por ele ser ex-agente policial, há uma agravante?
 
Foi para sanar essas e outras dúvidas que o Leiagora conversou com o vice-presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso, o advogado especialista em direito penal Augusto Bouret Orro. De forma bem didática e com exemplos práticos, o advogado nos contou como funciona essa excludente de ilicitude tão comentada atualmente.
 
Confira a entrevista na íntegra abaixo:
 
Leiagora - Devido a diversos fatos que têm ocorrido no país e até mesmo aqui na Capital de Mato Grosso, tem-se discutido muito acerca da legítima defesa e seus desdobramentos. Porém, as pessoas ainda têm muitas dúvidas sobre o tema. Afinal, como se caracteriza a legítima defesa?

Augusto Bouret - A legítima defesa, ela se dá quando aquela pessoa que vai realizar a defesa de um crime, digamos assim, ela usa de um meio moderado e suficiente para repelir, ou seja, para afastar aquela agressão injusta, atual ou que vai ocorrer, que está eminente.

A lei traz o termo iminente, que está na iminência de ocorrer, ou seja, tem que ser um perigo atual, concreto ou iminente contra si, contra eu mesmo que vou fazer a legítima defesa, mas também pode ser contra outra pessoa, contra um terceiro.

Vamos dar um exemplo para ficar mais fácil de compreender. Vamos supor um caso em que você vem me agredir com um soco e eu utilizo um meio moderado para repelir essa agressão. Aí vamos supor que eu vou te dar um outro soco, eu vou te empurrar, enfim, tem que ser um meio moderado. É diferente, por exemplo, você vir me dar um soco e eu sacar uma arma e te dar um tiro. Não é moderado. A gente tem que ver qual seria o crime, a conduta daquele agente e a conduta da vítima que está realizando a legítima defesa.
 
Leiagora - Então vai de caso em caso?

Augusto Bouret - Isso, tem que analisar todo o caso concreto.
 
Leiagora - Você falou uma coisa muito interessante aí sobre a legítima defesa de terceiro. Como funciona isso?

Augusto Bouret - A própria lei ela diz que é quando vai se violar um direito seu ou de outrem. Esse outrem seria o terceiro. Pega aquele mesmo exemplo anterior da agressão. Você vai me dar o soco, só que em vez de você dar o soco em mim, você ia dar o soco, numa outra pessoa, na minha mãe, no meu filho, enfim. Neste caso quem vai praticar a legítima defesa, quem vai se utilizar de um crime que seria dar o soco em você, que seria uma lesão corporal, sou eu. Tudo isso dependendo do meio necessário. Neste caso, se caracterizaria uma defesa de terceiro.
 
Leiagora - Esse terceiro deve obrigatoriamente ser uma pessoa do meu vínculo social ou pode ser um terceiro estranho?

Augusto Bouret - A lei não traz nada quanto a você ter que conhecer, ter algum algum vínculo com esse terceiro. Ela simplesmente diz de repelir a agressão ao direito de outro, ou ao direito de outro, que em tese aquela pessoa estaria cometendo crime.
 
Leiagora - A doutrina jurídica diz que a legítima defesa é uma excludente de ilicitude. Isso quer dizer o quê? Que não tem crime ou que não tem pena?

Augusto Bouret - Vamos lá. Como é que funciona teoria do crime? De uma maneira bem simplificada: nós dividimos em três grandes pilares: se o fato, a conduta é típica; se ela é ilícita ou lícita; e se o agente é culpado. Tem que ter essas três figuras para se configurar o crime.

A primeira, se o fato é típico, ou seja, se ela está na norma, se aquela conduta praticada por determinada pessoa é descrita como um crime. Por exemplo, eu atirei em alguém e essa pessoa veio a óbito. Eu matei alguém. E se matar alguém, tem alguma legislação que fala sobre isso? Tem, o código penal. Então pronto. Está descrito ali um fato típico, a conduta que ele praticou é um fato típico na lei, que seria o crime de homicídio.

Aí a gente passa para o segundo pilar em que a gente vai analisar a antijuricidade, a ilicitude. E aqui que entra a legítima defesa como uma excludente de ilicitude. Embora matar alguém, ao pé da letra, seja um crime, existem algumas excludentes de ilicitude que deixam aquela conduta de ser um crime. Que seriam elas: a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento de um dever legal ou exercício regular do direito. Nós temos aí quatro excludentes de ilicitude, que é uma forma de que, embora você pratique uma conduta que na lei é criminosa, mas ela deixa de ser crime em razão de ter sido praticado essa conduta por algum desses motivos.
 
Leiagora - E quando essa legítima defesa passa a ser um crime?

Augusto Bouret - A legítima defesa ela tem alguns requisitos. Tem que usar os meios moderados para repelir aquela agressão que tem que ser atual ou iminente, tem que ser uma agressão injusta e uma agressão ao direito seu ou de outrem. A partir do momento que faltou um desses requisitos não se configura a legítima defesa.

Mas vamos além, vamos supor que está preenchido, foi uma agressão injusta, atual ou eminente que você teve que repelir, mas, como eu disse você não utilizou de um meio adequado, você ultrapassou, houve um excesso. Esse excesso você responde por ele. Se você ultrapassa, se você deixa de preencher algum desses requisitos, você vai responder. Ou vai ser o excesso de defesa ou vai ser a falta dessa defesa. Isso depende muito do caso específico pra poder analisar.
 
Leiagora - No início do mês tivemos o caso do vereador tenente-coronel Marcos Paccola, em que ele matou a tiros uma pessoa. Ele alega que, como militar, ele estava exercendo a sua função. Como funciona a legítima defesa no caso do militar? Tem alguma diferença para o cidadão civil?

Augusto Bouret - O militar ele estando do serviço ou fora do serviço ele continua sendo militar. Ele sempre ele é militar, de folga ou não. Mesmo se ele estiver na reserva, ele é militar. Ele só deixa de ser militar se ele abandonar a carreira ou se ele pedir exoneração ou sair da corporação ou das forças armadas do exército, aí ele será tratado como civil, ele vai perder o porte dele e tudo mais.

Para a legítima defesa são os mesmos requisitos. Nesse ponto não se diferencia. Mas o militar tem ali, dentre as obrigações do militar de sempre estar atento, tem que ter a disciplina que faz parte ali do militarismo, a hierarquia de ver se algo está acontecendo ele deve tomar alguma atitude.
 
Leiagora - Seria o do estrito cumprimento do dever legal? Que também é uma excludente de ilicitude?

Augusto Bouret - Na verdade o estrito cumprimento do dever legal é diferente. Ele é uma situação e a legítima defesa é outra. No estrito cumprimento do dever legal, o agente, vamos chamar assim, a pessoa vai agir conforme a sua obrigação de militar, por exemplo em ter que prender alguém, enfim fazer a sua atuação. Porém ele não pode exceder.

Vamos supor que o militar foi fazer uma abordagem, o cara não quis ser preso, aconteceu alguma coisa os policiais bateram na pessoa na hora de algemar, foi necessário, isso é o uso moderado da força. Às vezes precisa dar um uma mata-leão na pessoa. Isso é o estrito cumprimento do dever legal. Mas se ele exceder, aí já não encaixa nessa excludente. A excludente só encaixa quando ele age estritamente ali.
 
Leiagora - O vereador ainda alega que o tiro foi nas costas e não pelas costas. Existe algum entendimento ou tese jurídica que diferencia isso?

Augusto Bouret - Olha, isso eu não sei te responder essa. Para mim não faz muita diferença.
 
Leiagora - Outra alegação do vereador é a legítima defesa putativa. O que é isso?

Augusto Bouret - Nós já estabelecemos o que é legítima defesa. Esse é o conceito da lei, a linha genérica que eu falo que é direito seu ou de outro, enfim, a legítima defesa real. Aí tem a legítima defesa putativa que é outra modalidade.

A putativa ela se dá da seguinte maneira, vamos trabalhar a questão da injusta agressão que você vai ter que repelir. Essa agressão ela não vai ser atual, vai ser iminente. Por quê? A putativa é quando o agente que vai praticar a legítima defesa ele imagina que você vá agredi-lo.

Vamos supor, eu estou aqui brigando com você e coloco a mão na minha case por exemplo. Você vai achar que eu estou pegando uma arma e às vezes não, eu estou só coçando a barriga. Mas, na cabeça da pessoa não.

A doutrina trabalha muito com a questão da consciência psicológica do agente. Do que a pessoa entendeu ali diante daquele cenário que iria ocorrer alguma coisa. Um exemplo muito claro é esse da arma, que é o exemplo mais comum. Então a legítima defesa seria isso, é algo que ele imagina na cabeça dele, que aquilo iria acontecer.
 
Leiagora - Então pode-se dizer que é um erro escusável.

Augusto Bouret - Isso mesmo. Embora não seja uma arma, não fosse uma arma nesse exemplo que eu te dei, na cabeça dele, ele somente praticou essa legítima defesa porque ele tinha essa consciência de que ali ia ocorrer aquela agressão injusta e iminente.
 
Leiagora - Mas se é um erro, não é um crime?

Augusto Bouret - Então, é por isso que no direito penal, igual quando a gente está falando aqui em dolo, quando a gente fala em dolo, por exemplo, “mas ele tinha interesse no resultado daquele crime” ou “ele não tinha interesse”, ou “ele sabia que poderia ocorrer aquilo e agiu mesmo assim”. Isso tudo a gente parte do pensamento daquela pessoa, não da conduta simplesmente. Vamos supor, no nosso exemplo matar alguém, a gente tem que entrar sempre no porquê que ele matou alguém. O que que estava acontecendo ali?
 
Leiagora - Nessa legítima defesa, o dolo é discutido?

Augusto Bouret - Na legítima defesa ele pode responder pelo excesso doloso ou culposo de legítima defesa.

Vamos lá. Eu pratiquei a legítima defesa mas, eu me excedi de alguma forma, ali ou com dolo ou com vontade de exceder ou por uma negligência minha, uma imperícia, uma imprudência minha, que seria a culpa. Aí eu respondo por esse excesso, seja ele doloso ou culposo.

Para se analisar a legítima defesa não há necessidade de analisar o dolo. Primeiro eu vou olhar o fato, daquelas três sequências que eu te falei da teoria do crime. Primeiro eu vou olhar o fato, a conduta praticada por ele. O dolo a gente vai trabalhar lá no final, embora a gente veja um pouco no início, mas lá no final que é no terceiro pilar, que é o da culpabilidade que a gente vai trabalhar o dolo ou a culpa.
 
Leiagora - Como se aplica a legitima defesa nos casos da Lei Maria da Penha? Tem diferença?

Augusto Bouret - A gente precisa entender algumas coisas da Lei Maria da Penha se diferem do direito criminal, dos demais crimes, vamos colocar assim. A Lei Maria da Penha que é considerada pela ONU a terceira lei mais avançada em defesa dos direitos das mulheres.

No início, quando a mulher ou alguém denuncia uma violência doméstica, o que é dito ali presume-se verdadeiro. Nessa primeira fase investigativa, o início de uma ação penal e tudo mais. Durante o processo, durante a ação penal é que aquele acusado, seja aí a companheira, o marido, enfim, é ali que ele vai poder demonstrar a verdade, vai poder fazer as provas dele. E de igual forma, é nesse momento também que a acusação que é feita pelo Ministério Público que tem que apontar ali as provas, a presunção da fala da mulher, da vítima, ali ela deixa de ser uma presunção de veracidade.

Agora nós precisamos de provas. É até uma crítica minha à lei. Por um lado é muito bom para aquelas mulheres extremamente vulneráveis. Isso não se descarta. Mas o que tem acontecido é, por conta de se presumir ali aquele naquele momento que a mulher fala, a gente tem visto muitos casos em que as mulheres têm abusado desse direito pra poder prejudicar o homem. E isso é um problema, mas isso não é um problema da lei. Então a gente precisa cuidar de quem tá mais sofrendo que são aquelas mulheres em situações horríveis.
 
Leiagora - Mas na Lei Maria da Penha, para se provar a legítima defesa é mais difícil? Tem um maior rigor nesse ponto?

Augusto Bouret - A excludente de ilicitude, não só a legitima defesa, elas estão previstas na parte geral do código penal. Então a legítima defesa é aquela para todos os casos criminais, exceto por alguma determinação de alguma lei específica, vamos supor no Código Penal Militar pode ter algo exclusivo lá dos militares. Mas na Maria da Penha, que também é uma lei especializada, não consta nada. São esses mesmos requisitos. Mas o momento acaba sendo possível somente em ação penal. Por vezes o advogado do acusado vai conseguir demonstrar isso, ele já respondeu a todo um processo, já ocorreu uma série de situações.
 
Leiagora - Voltando ao caso do vareador Paccola. Ele fala que ele agiu na em legítima defesa de outrem por ele ser militar. E você disse que ninguém deixa de ser militar. Neste caso é estrito cumprimento legal e não em legítima defesa da mulher?

Augusto Bouret - Quando o militar está de folga ele tem uma limitação na sua atuação. Ele não tem que fazer um serviço, o estrito cumprimento do dever legal se enquadra no caso ali de um militar que está trabalhando, uma guarnição policial, ou até mesmo um advogado que está ali exercendo a profissão. No caso dele, ainda que da reserva remunerada, ele não se enquadra.
 
Leiagora - Então neste caso seria realmente uma legítima defesa?

Augusto Bouret - Tecnicamente, seria. Agora o que se consta lá, a gente não tem conhecimento para poder falar nada sobre o caso concreto.
 
 
 
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