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Notícias / Entrevista da Semana

26/03/2023 às 08:00

Violência doméstica é uma espiral que vai ficando mais grave até chegar no feminicídio, alerta delegada

Ações de prevenção que auxiliam na redução dessa estatística são extremamente necessárias, tanto pelas vítimas quanto pelos órgãos da Justiça e Segurança

Eloany Nascimento

Violência doméstica é uma espiral que vai ficando mais grave até chegar no feminicídio, alerta delegada

Foto: Eloany Nascimento/ Arte: Leiagora

A violência doméstica contra a mulher é uma espiral que cada vez vai ficando mais grave até culminar na morte da vítima. No ano passado em Mato Grosso, os dados revelaram um aumento de 19% nos crimes de feminicídio. Foram 47 mulheres assassinadas em situação de violência de gênero que deixaram 92 órfãos. 

Ações de prevenção que auxiliam na redução dessa estatística são extremamente necessárias, tanto pelas vítimas quanto pelos órgãos da Justiça e Segurança.

Quem fala sobre o assunto é a titular da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Várzea Grande, Mariell Antonini Dias, que também coordena uma operação nacional de combate a crimes de violência contra a mulher no estado.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Leiagora - A violência doméstica e familiar contra a mulher é configurada com qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Diante de um quadro como esse, quais medidas devem ser tomadas pela vítima?

Mariell Antonini Dias - Eu sempre falo para as vítimas no primeiro ato de violência sofrido não aceitar e se posicionar porque a violência ela tende sempre a progredir.

Então, o que nós observamos é que ela é um ciclo que começa com uma explosão, geralmente menor, onde após isso o casal retoma o relacionamento, entra em uma nova fase, que nós chamamos de 'lua de mel', porque o homem se arrepende e pede perdão. Entram em uma nova fase acreditando que isso nunca mais vai acontecer e que o casal realmente vai conciliar devido a toda dificuldade de romper essa relação.

Posteriormente as tensões do dia-a-dia voltam a acontecer porque todo relacionamento e a vida real são cheios de problemas das mais variadas espécies, como por exemplo: educação dos filhos, dificuldades financeiras e essas tensões que vão aumentando no dia-a-dia.

Após essas etapas, vem a nova fase de explosão que geralmente é um ato maior. Então, se lá no passado o autor havia xingado a vítima ou ameaçado, nessa outra violência ele já agride, ele concretiza a ameaça e isso é uma espiral que vai ficando mais grave até chegar no estágio da morte da vítima.

Então a vítima de feminicídio que nós atendemos, os casos que nós atendemos, verificamos que a maioria é permeada de violência pretérita. É difícil um fato que acontece já culminar no feminicidio, porque vem um histórico de violência atrás.

Na primeira violência sofrida se respeite! Coloque um ponto final nessa história, porque daqui pra frente a coisa só vai ficar pior. Então, as medidas que as vítimas devem tomar de imediato é registrar um boletim de ocorrência, solicitar uma medida protetiva para a gente poder iniciar um procedimento. 

Leiagora - Quais ações os órgãos de segurança tomam para proteger as vítimas? 

Mariell Antonini Dias -
Se a vítima tem uma lesão corporal, o delegado vai instruir, ela será orientada a fazer o exame de corpo de delito. Se tem uma porta quebrada na casa, também vai ser colhida uma perícia. Então, o importante é fazer o B.O e registrar a medida porque a medida salva vidas realmente, não é só uma folha de papel, é todo mecanismo de Justiça trabalhando em prol dessa mulher.

Quando a mulher solicita a medida protetiva, além dela ter em prol dela uma série de medidas cautelares, mas que impendem o autor de se aproximar dela, de manter contato, ela ainda tem a possibilidade de conseguir instalar o botão SOS Mulher no celular, que é o que chamamos popularmente de botão do pânico, onde ela tem plenas condições de acionar o sistema da polícia, da segurança pública com um simples clicar de dedos na tela do celular, então é muito ágil e fácil dessa forma de acionar a guarnição para atendê-la.

É possível também que a mulher tenha acompanhamento da patrulha Maria da Penha que vai fiscalizar essas medidas. Por meio judicial, ela [a patrulha] entra em contato com autor e notifica: 'olha, a partir de hoje essa mulher está protegida pelo sistema de Justiça e você não pode se aproximar, não pode manter contato'. E isso realmente inibe muito os agressores. A equipe também acompanha a vítima, conversam, verificam se realmente a medida protetiva está tendo efetividade.

A mulher também pode ser acompanhada por um atendimento psicológico. É possível encaminhar o autor aos grupos reflexivos para entender o grau nocivo da violência. Se a vítima não tiver para onde ir, se ela precisa de um acolhimento do estado, porque ela saiu fugida de casa, é possível colocar ela na casa de amparo, inclusive os dependentes.

Outro serviço é o acompanhamento dos policiais em casa para retirar os pertences. Então, tudo isso, é um serviço que é feito pelo sistema de Justiça com esse primeiro atendimento.

Olha importância! Quantos serviços são disponibilizados para a mulher em situação de violência doméstica! É importante que ela tenha esse conhecimento e busque ajuda. 

Leiagora - No caso de um agressor que recebe a intimação da medida protetiva e continua ameaçando e perseguindo a vítima. Quais ações são tomadas? 

Mariell Antonini Dias - Eu gosto muito de falar sobre isso, porque a medida protetiva ela tem que ter efetividade. Então, se o juiz proferiu uma medida protetiva, essa decisão não é uma simples folha de papel, ela tem que ter efetividade, ela tem que surtir efeito, essa mulher ela tem que realmente estar protegida. Mas muitas vezes o autor fica obcecado, ele persegue a mulher, não aceita o término da relação e para esses casos às vezes a medida não funciona, então é importante que a vítima não fique com sentimento de frustração e fale “a Lei Maria da Penha não funciona”, não, ela tem que vir na delegacia de polícia comunicar “doutora, eu pedi a medida, mas não funcionou, ele continua transgredindo contra mim”, porque o delegado tem condições de analisar e pedir a prisão.

Nós temos no sistema da delegacia da mulher de Várzea Grande nove pedidos de prisão pendentes de análise do Judiciário. Então a vítima tem que entender que não funcionou volta e comunica o delegado, porque só assim que nós temos condições de representar pela prisão preventiva, ou até mesmo designar uma equipe para fazer a prisão em flagrante, se o crime tiver acontecido no mesmo dia.

Não fique com sentimento de frustração, volte e comunique para que nós possamos agir. Se você não comunicar o crime fica perpetuando. 

Leiagora - Em caso de mulheres que sofrem violência e não denunciam com receio de magoar o filho, ou não tem como cuidar sozinha, ela deve permanecer em um relacionamento abusivo?

Mariell Antonini Dias -
É importante que a mulher coloque na cabeça o seguinte: todo mundo merece viver sem violência! Esse é o primeiro ponto. Nós viemos no mundo para sermos felizes, vivermos sem violência, nós somos mulheres de inspiração. Pelo menos uma pessoa na face da terra nós inspiramos que são os nossos filhos.

A mulher quando sofre violência na frente dos seus filhos, ela não pode esquecer que além dela ser vítima ela está deixando uma marca no filho, uma marca negativa de que ela aceita uma violência e ao contrário disso nós temos que ser pessoas de inspiração, pessoas que rompem os desafios, que rompem as violências.

Eu sei que existem inúmeros obstáculos para você sair de um relação violenta, relação abusiva. A primeira dela é a dependência afetiva, existe realmente amor, um vínculo entre as partes, então realmente fica difícil romper esse vínculo. Muitas vezes também dependência financeira, mulher nunca trabalhou, nunca saiu de casa, ou tem uma idade avançada. Mas existe a questão de lidar com medo de não conseguir cuidar dos filhos sozinha, vontade de manter a família de ter uma referência paterna, que apesar de ser violento com a mãe, ele é bom para os filhos. Então tem várias situações que cercam toda violência doméstica.

É importante que a mulher busque, sim, ajuda, porque ninguém deve viver sob violência. Como eu disse antes, a violência só proguide, vai ficando cada vez pior até que chega ao ponto de um homem se achar no direito de tirar a vida da mulher e muitas vezes na frente dos seus filhos, que é uma marca muito negativa. Então toda mulher deve pensar nela em primeiro lugar. 

Leiagora - Recentemente, noticiamos o caso da Jovem Emilly de 20 anos, que foi morta a facadas na frente do filho de 4 anos, pelo ex-namorado em Cuiabá. Assim como ela não denunciou as ameaças e agressões sofridas por parte do autor do crime, sabemos que muitos casos de violência doméstica no Brasil as vítimas não denunciam. Por que acha que isso acontece? Existe um perfil comum entre essas vítimas? 

Mariell Antonini Dias - É uma série de fatores, a violência doméstica é diferente de outros crimes. Se eu sofro um roubo na esquina, imediatamente eu quero punição do autor, eu quero a recuperação do bem que eu perdi, eu quero reparação integral pelo prejuízo sofrido e eu quero a prisão dele. E por que isso? Porque eu não tenho vínculo com o autor , eu não conheço.

Em relação à violência doméstica não. A mulher tem um vínculo com o parceiro e ninguém começa a se relacionar com uma pessoa abusiva, antes de chegar nessa relação de abuso, anteriormente houve uma relação de amor, houve uma conquista, ninguém começa a namorar outro que agride no primeiro encontro.

No começo do relacionamento tem a conquista, o envolvimento, o homem é cavalheiro, ele puxa a cadeira, ele abre a porta, ele cuida dessa mulher, ele dá tudo que ela precisa para ser conquistada. Posteriormente, após a conquista, aí ele pode realmente mostrar o que ele pretende daquela relação. Ele pode controlar, ele pode dominar, porque aí já tem um vínculo afetivo. Então o que realmente dificulta o rompimento da violência doméstica é a primeira coisa, o rompimento desse vínculo afetivo, que é muito forte.

Segundo ponto seria a modificação de pensamento. Infelizmente apesar de ter uma família, eu terei que criar os meus filhos sozinha, enfrentar questões econômicas, nova realidade, mudança de conjuntura, realmente é uma mudança que a mulher tem que fazer. E nós sabemos que nós como seres humanos temos dificuldade a lidar com mudanças, isso é do ser humano, nós temos dificuldade, temos medo do novo, mas esse medo tem que ser rompido e vencido para que a mulher possa viver sem violência.

Leiagora – Quais orientações você dá para as vítimas que por algum motivo não denunciam os agressores?

Mariell Antonini Dias - O que o relatório da inteligência da Polícia Civil constata que as vítimas que sofreram feminicídio a maioria não tinha medida protetiva. Nós tivemos 47 vítimas de feminicídio. Dessas, 45 não tinham sequer boletim de ocorrência. Ou seja, elas estavam invisíveis aos olhos do estado, que sequer tomou conhecimento das agressões que ela sofriam em casa. Então o sistema de Justiça não pode trabalhar por elas nesses casos.

Em Várzea Grande, no ano passado foram três feminicídios, sendo dois destes eram mães que sofriam violência pelos seus filhos que eram dependentes químicos. Então, às vezes, a mãe fica com muita dó do filho, não quer prejudicá-lo, que é um sentimento natural, mas não pode esquecer que esse filho pode sim evoluir e ceifar a vida dela, como aconteceu nesses dois casos que citei.

Então é importante procurar ajuda, confiar no papel do estado, na medida protetiva, buscar uma ajuda e solicitar essas medidas cautelares, porque realmente elas salvam vidas. 

Leiagora - As medidas protetivas precisam ser renovadas algum tempo após serem concedidas? Como é feito o auxílio e amparo às vítimas durante a vigência de uma medida?

Mariell Antonini Dias - Em regra, a medida protetiva tem um prazo de validade de seis meses. O Judiciário fixa na decisão e se houver ainda algum risco é possível renovar, se não automaticamente ela é revogada porque a medida protetiva é uma medida cautelar para guardar a mulher em situação de risco. Então venceu o risco, realmente não existe mais, a mulher já está protegida, não existe mais necessidade da medida. Se não, se ainda subsiste o risco, a renovação automática. O Judiciário entra em contato com a vítima, ela informa essa necessidade e há a renovação.

Leiagora - A senhora está à frente da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, e também está coordenando uma operação nacional de combate a crimes de violência contra a mulher em Mato Grosso. Em números, qual a realidade que vivemos em Várzea Grande e no estado? Como está sendo este trabalho?

Mariell Antonini Dias - A Operação Átria é coordenada pelo Ministério da Justiça, então ela foi desencadeada em todo o Brasil. Em Mato Grosso, a Polícia Civil coordena com a participação da Polícia Militar também. Só em Várzea Grande, a ação começou no dia 27 de fevereiro e neste curto período só a delegacia cumpriu mais de 10 mandados de prisão preventiva, um número significativo para poucos dias. E em âmbito de estado, nós estamos com 74 municípios envolvidos na operação e até agora temos dados parciais porque será finalizada na próxima semana.

Foram apurados mais de 210 denúncias que foram feitas de forma anônima. Em Mato Grosso, foram feitas mais de 70 palestras, viajamos para Cáceres, Chapada dos Guimarães e outras delegacias também viajaram para outros municípios para dar palestras, cumprimos mais de 120 mandados de busca e apreensão.

Além disso, fizemos também prisões civis por falta de pagamento de pensão alimentícia. Infelizmente muitos pais depois que separam da mãe acham que a responsabilidade de cuidar dos filho é só da mulher que tem que trabalhar um, dois, três períodos para poder cuidar dos filhos e não é assim né, filho não deixar de ser filho depois da separação.

Foram realizadas também prisões preventivas, temporárias, medida protetiva de urgência, foram solicitadas mais de 300 e foram lavrados mais de 60 flagrantes, então a ação foi um sucesso. 

Leiagora - Por fim, gostaria que a senhora falasse sobre a importância de denunciar e como as mulheres devem ficar atentas aos sinais de perigo.

Mariell Antonini Dias - Não fique com uma pessoa e na mesma semana já case com ela, namore bastante, namore 1 ano, 2 anos, conheça bem a pessoa, porque nós só conhecemos no dia-a-dia com a convivência diária. A gente precisa conhecer como é a pessoa, o jeito dela, como ela resolve os problemas, como se posiciona em determinadas situações, isso é muito importante. Você tem que ter um panorama para se entregar em uma relação, uma avaliação exata e isso só vem com o tempo, então avalie bem antes de casar para que não entre em uma situação dessa de um relacionamento abusivo.
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