Várzea Grande irá completar 156 anos na próxima segunda-feira (15). A cidade de mais de 287 mil habitantes é a segunda maior do estado, acolhedora para quem chega e berço de famílias tradicionais que não a trocam pela capital. O município se desenvolveu ao longo dos anos pelo sistema industrial latente da década de 1960 e, hoje, o comércio é a principal fonte de renda dos moradores.
Para homenagear 'Vegê', nada melhor que relembrar a história de uma das principais personalidades do município, Sarita Baracat. Para falar sobre os feitos da professora que fez história ao conquistar a prefeitura de Várzea Grande em 1966, quando o cenário político era majoritariamente ocupado por homens, o Leiagora entrevistou a escritora e historiadora Neila Maria Souza Barreto que produziu a biografia ‘Sarita Baracat, vida e trajetória política’, publicada em 2018.
Neila relata os desafios da ex-prefeita, ex-vereadora e ex-deputada e fundadora do Clube Esportivo Operário Várzea-grandense, na busca por educação para todos, mesmo pertencendo a uma família de posses. E, para além dos registros políticos de Sarita e da percepção heróica da personalidade, são destaques a perda da visão já na velhice e a relação de carinho com o neto, atual prefeito da cidade, Kalil Baracat.
Sarita, mãe de Ernandy Maurício Baracat de Arruda, Nico, Fernando César Baracat de Arruda e Eveline Baracat, faleceu em 2017, aos 86 anos de idade.
Leia a entrevista na íntegra.
Leiagora - O que te motivou a escrever sobre Sarita Baracat?
Neila Barreto - Eu já escrevia sobre mulheres. Eu sempre gostei de escrever pequenos textos e muitas vezes fazia pesquisa sobre e não tinha oportunidade de publicar. No entanto, quando o Kleber Lima me apresentou esse projeto da Sarita Baracat pra escrever a biografia dela, eu abracei com unhas e dentes, porque seria uma pesquisa matriz que me daria a oportunidade de aprendizagem e escrever sobre outras mulheres. Nesse sentido, mulheres visíveis e invisíveis, né? No caso de dona Sarita muito já tinha sobre ela, mas nunca documentado. Então, o que me fez ter interesse por isso é documentar o que tinha no imaginário coletivo das pessoas.
Leiagora - Como foi esse processo de produção, reunir todas essas informações, como você fez? Quem você entrevistou e quanto tempo durou essa pesquisa?
Neila Barreto - Olha, essa pesquisa durou mais ou menos quase dois anos. Porque a princípio quando eu fui entrevistar a dona Sarita, eu já conhecia, sabia quem era ela. Eu fui colega, me informei com o Fernando Baracat na faculdade de jornalismo. Então, eu só não tinha conhecimento que ela tinha perdido a visão. Ela tinha uma visão muito pouca de um lado. Então, eu me assustei a princípio e quando eu comecei a trabalhar com ela eu tive que, na verdade, montar, descobrir, uma metodologia nova para fazer o trabalho dela.
Primeiro, trabalhar com personagem vivo. Segundo, uma mulher extremamente inteligente. Então quando eu me deparei com essas características eu fui moldando a minha metodologia de trabalho. Eu conversei com ela, procurei saber mais ou menos, né? O pensamento dela, expliquei a ela o que que ela queria, ela falou, ‘ o que que você quer saber da minha vida?’ [risos]. Eu falei, dona Sarita, eu não quero saber da vida da senhora. Eu quero documentar tudo que a senhora representa para as mulheres mato-grossenses. Ela riu.
Então, o que foi o que eu fiz? Eu gravava todo dia em Várzea Grande dentro das possibilidades dela eu gravava todas as conversas com ela, voltava pra casa, ouvia aquela conversa, passava a limpo voltava outro dia. Lia o que ela falava, eu escrevia e aí ela aprovava ou não.
O livro dela foi feito, vamos supor assim a quatro mãos. Porque pelo fato dela estar né? E com a visão pouca, né? Eu tinha que ler, aí ela corrigia e voltava no outro dia. Continuava e aí no processo da escrita eu fui perguntando pra ela sobre fontes documentais. Porque hoje em dia é muito difícil fontes documentais. Muitas vezes você vai em um lugar, não existe mais os livros. Você procura e não existe mais os jornais da época.
Leiagora - Como a história de Sarita, em relação a integrar uma família tradicional, e ter a possibilidade de estudar, propiciaram a ela a oportunidade de adentrar na política?
Neila Barreto - Quando ela fala que ela teve dificuldade pra estudar, não era [dificuldade] financeira. Era ainda aquele tempo em que as mulheres não andavam sozinha. A família disse pra ela, ‘você vai estudar, mas você vai esperar o seu irmão João crescer e aí você vai vai com ele estudar’. Aí é aquela caminhada que ela fazia de Várzea Grande até Cuiabá e o retorno. Naquela época, Várzea Grande ela falava até no período dela, a escolaridade era difícil.
Ela falava que tinha que proporcionar ônibus enquanto prefeita pro pessoal vir pra Várzea Grande pra estudar. Ela ia pra Cuiabá, fez curso de normalista lá mesmo onde funcionava, no colégio estadual de Mato Grosso, né? E aí ela começou a trabalhar como professora, depois ela fez contabilidade. Mas, todas essas escolas que ela estudou era tudo aí em Cuiabá. Várzea Grande não tinha escola de segundo grau. Então ela tinha dificuldade. Mas depois que ela fala só depois que o pai dela comprou um carro, aí eles tiveram mais oportunidades.
Ela gostava muito daquela irmã dela que morreu, a dona Azize. Ela era muito junta com a professora Zilda, aí você via uma parceria muito grande na educação, tanto é que ela falava pra mim, Neila, quando eu morrer, eu não quero ser reconhecida como nada. Eu quero ser reconhecida como professora. Porque esse é o cargo mais nobre que existe na vida
Leiagora - Como Sarita enfrentou os desafios na trajetória política, especialmente por ser uma mulher em um espaço que majoritariamente era ocupado por homens na época?
Ela me dizia: Neila, eu comecei a fazer discurso na escola. Eu subia na cadeira, fazia discurso sobre os assuntos, mas eu nem sabia. Só que ali eu já começava a fazer política, né? Então quando ela fala que ela subia na cadeira e lá ela não sabia porquê, ela começava a fazer os discursos por alguma coisa, alguma explicação na escola ela falava que ela já estava inserindo no no ambiente político. Só que tinha dificuldade porque as reuniões eram reservadas para homens e não podiam mulheres, né? Quando ela entrou para ser ajudante da torcida do Operário, ela fala assim que ela vai abrindo espaços da forma dela.
Sem afrontamento de homens, com muita paciência para que ela pudesse ter acesso a todos os tipos de informações que ela poderia crescer. Assim ela teve enquanto vereadora e assim ela fez enquanto prefeita sem afrontar ninguém. Ela falava ‘não precisa aprontar ninguém, eu preciso só conseguir um espaço que eu possa expor minhas ideias e também trazer as mulheres’ que que pudesse simpatizar com ela.
Leiagora - Várzea Grande irá completar cento e cinquenta e seis anos na próxima segunda-feira. Quais foram as principais contribuições de Sarita na construção dessa história?
Neila Barreto - Quando ela fala que pra ela fazer uma extensão de ligação de água, ela precisava ir lá na casa do fulano, conversar com ele, que ela ia ter que passar a rua pra fazer aquela ligação de água e muitas vezes a pessoa vinha de revólver na cintura e ela tinha que tinha que enfrentar isso, ela falava que muitas vezes ‘Eu fui com um revólver também na cintura, Neila. Não pra eu usar, mas pelo menos pra intimidar’. Aí ela falava, “eu fui conversar com com os os empresários de buscar incentivo lá no livro tem muita gente que escreve em Várzea Grande e aí eu não posso falar porque as pessoas estão vivas.
Mas ela falava que ela foi buscar esses incentivos para as indústrias se instalarem em Várzea Grande. Ela proporcionou um incentivo de descontos de impostos, mas ela exigiu que fosse dado um emprego para o povo de Várzea Grande para que pudesse construir uma cidade melhor, né? Construir escola, daí lá na câmara eu encontrei a documentação que fala que aquele slogan, Cidade Industrial, né? Foi criada na gestão dela. Aí vem né, água, energia, bem-estar, ela investiu muito no clube esportivo de Várzea Grande, ela tinha essa ideia de que o esporte além de ser uma área de saúde de lazer, também contribuía para que a população pudesse ter um estímulo, um orgulho de sua cidade.
Leiagora - Você acredita que ela estaria feliz com o cenário atual de Várzea Grande e com a trajetória de seu neto, Kalil Baracat à frente da prefeitura?
Eu acredito, porque quando eu estava lá entrevistando, o Kalil entrava, e eu achava incrível, ela com a dificuldade da visão, levantava rápido para atender e falava assim ‘Que que é meu filho? O que é que você está precisando? Você quer comer alguma coisa? Vovó faz’, então ela tinha um encantamento por esse menino, que todas as vezes que eu estava lá que ele entrava ela fazia isso. E ele, tem uma educação peculiar. Ele falava: “Não, vovó, não precisa. Só vim ver a senhora”. Sentava um pouquinho com ela, conversava com ela e ia embora. Mas ela ficava toda formosa, ela tinha o prazer de formar.
Ela falava assim: "O Nico não está mais aqui, mas o Kalil já está bem adiantado para fazer os enfrentamentos políticos e, pelo caráter dele e a forma de agir, ele vai chegar muito longe, né? Ele não é um homem de enfrentamentos, ele fala, mas não fala em tom de agressividade". Eu penso que o caráter dele foi formado muito por dona Sarita. Eu entendo que, hoje, ela, onde estiver, está muito feliz com essas vitórias, porque era o prazer dela ver o neto ser um administrador de Várzea Grande, fazendo parte da política de Várzea Grande.
Leiagora - Sarita foi homenageada com a inauguração da ‘Casa Sarita’ nesta semana em comemoração ao aniversário de Várzea Grande. Se trata de um lar que irá acolher mulheres vítimas de violência doméstica. Você acredita que ela estaria feliz com a homenagem?
Neila Barreto - Muito. Porque, muitas vezes, eu sentava com ela naquele escritório daquela casa perto da Caixa Econômica Federal. E aí, a janela era aberta, mas assim, todo mundo que passava na rua ela queria ver e falava pra ela ‘Ei, dona Sarita’. Então ela falava que a porta da casa dela nunca poderia estar fechada para o povo de Várzea Grande. Ela queria que a casa dela recebesse todas as pessoas de Várzea Grande. Então eu penso que essa construção dessa casa, na parceria entre o Kalil e a Kica [esposa de Kalil], vem ao encontro do pensamento dela.