O debate sobre a violência de gênero ganhou destaque nos últimos dias nos veículos de comunicação e na Assembleia Legislativa de Mato Grosso. Não bastasse a criação de uma comissão composta apenas por homens para debater políticas de combate ao aborto no estado, sem a presença da única parlamentar nessa comissão, o Legislativo estadual foi palco de uma nova polêmica. Desta vez, o deputado estadual Gilberto Cattani (PL) ganhou os holofotes após comparar mulheres gestantes com a vacas.
Para falar sobre as consequências e a importância da ocupação das mulheres nos espaços de poder para mudar a realidade da política e da violência de gênero em Mato Grosso e no Brasil, o Leiagora entrevistou a presidente da Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MT), Glaucia Amaral.
Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Leiagora - Gostaria que começasse explicando o que é a violência de gênero, se é fácil reconhecê-la, e quais as punições previstas em lei para essa prática.
Glaucia Amaral - A violência de gênero é quando a prática criminosa independe da natureza do crime, ela ocorre embora a gente tenha tipos específicos, tipos criminais específicos que a gente trata, tipo em caso de homicídio você tem o feminicídio, mas a violência de gênero é quando aquele ato ocorre em razão do gênero.
Muita gente associa a dizer o seguinte, que é então um crime de ódio puro em que sem qualquer razão uma mulher ou uma pessoa do gênero feminino é atacada. Não se trata disso. Às vezes você encontra variações de crimes em que, aproveitando-se de condições culturais, de condições sociais, da posição de predominância de um gênero sobre outro por tradições, se pratica determinado tipo de crime contra aquela pessoa. Então hoje nós temos mais conhecido o feminicídio que é quando a mulher morre pela condição de ser mulher e aí a gente verifica no feminicídio a presença clara em muitos dos casos do crime acontecer quando o homem não aceita por exemplo o final do relacionamento, ele não aceita traição, não aceita que a mulher não cumpra as funções que ele entende que seja obrigação da mulher.
Então você identifica uma posição em que esse indivíduo ele se vê ainda que inconscientemente, mas a gente percebe na dinâmica da relação, em predominância em relação à mulher. Antigamente a gente falava dos crimes de traição que ele estava lavando a honra, e hoje esse indivíduo ainda entende que a mulher é tratada como propriedade ‘se não vai ficar comigo, não ficará com ninguém’. A gente vê nessa frase que a mulher é tratada como coisa, ‘prefiro ela morta do que me separar’, então assim há um viés de tratamento de desvalor, tanto da vida dessa mulher, quanto como se ela fosse uma propriedade que não pode sair da esfera de domínio desse homem.
De fato, a gente consegue identificar os crimes de gênero não meramente porque o indivíduo conscientemente odeia ou sinta algum preconceito declarado em relação à mulher, mas que na dinâmica daquela relação você consegue identificar.
Assim é em outros tipos, nós temos violência de gênero patrimonial, na importunação sexual, abuso sexual, moral, violência psicológica e a gente identifica bastante que há um vies de gênero ainda entendendo a mulher ou agindo como se a mulher estivesse em uma posição de inferioridade em relação ao homem e aos seus direitos nessa relação ou explorando alguma fragilidade.
Leiagora - Antes de irmos para a próxima pergunta, gostaria que explicasse como identificar quando uma opinião passa a ser considerada violência de gênero.
Glaucia Amaral - Nós temos no código penal injúria, calúnia, difamação, discriminação, e quando isso é praticado em relação ao gênero é possível identificar a violência, ou seja, quando existe uma depreciação. Na realidade, a opinião é uma classificação, uma depreciação da mulher, ou do gênero feminino em geral, quando ao invés de ser uma manifestação é a expressão da repetição de preconceitos antigos.
Tem uma expressão usada em relação ao racismo, chamado racismo recreativo, que é quando um indivíduo ou o que se refere a ele torna-se uma piada pejorativa. Isso ocorre também em relação à mulher ou a diminuição das qualidades femininas em geral ou da possibilidade de opinião em geral e isso acontece não só em relação à mulher, mas acontece injúria, calúnia e difamação, a gente consegue identificar esses discursos em relação a diversos grupos de indivíduos.
Leiagora - Na semana passada, um assunto que repercutiu muito foi um vídeo postado nas redes sociais pelo deputado estadual Gilberto Cattani, em que ele se desculpa com vacas por tê-las comparado a ativistas dos direitos das mulheres. Como a senhora avalia essa conduta? Isso pode ser considerado violência de gênero?
Glaucia Amaral - A OAB representou incluindo esses vídeos e antes mesmo de ser violência de gênero nós temos na Constituição a proibição de discriminação de pessoas por sua convicção política ou filosófica. Então, independente da opinião contrária a opinião dele ou de quem quer que seja, é necessário respeitar.
Você não pode comparar daquela forma! Isso, na realidade, foi uma grande ação cênica, que foi gravada, onde tiveram falas em que se afirmou que os animais estariam sendo diminuídos ao serem comparados a mulheres feministas, ou seja, ele desrespeita mulheres e ele desrespeita a liberdade, convicção política ou filosófica, inclusive o feminismo é um pensamento que trata da igualdade entre homens e mulheres.
A gente sabe que pra um grupo político tem um significado e para outro grupo político tem outro significado, mas independente disso existe a liberdade e a proibição da Constituição da República e da Constituição Estadual também que se dirige diretamente aos integrantes dos poderes de não discriminação por convicção política ou filosófica e, com franqueza, era o que faltava, né? A essa altura da vida...
Mas fora isso, de fato, ele se dirige a um grupo de mulheres achando que pode ofendê-las, o que elas pensam, mas antes mesmo disso há um trecho que ele com todas as letras diz que jamais seria comparada a gestação das meninas, que são as vacas, que eles referem a outro animal. E na ocasião em que ele fez essa comparação ele utilizou a gestação de mulheres, seres humanos com vacas. E em outro momento ele pede desculpa, porque ele jamais compararia entre as vacas com outro animal e esse outro animal comparado são seres humanos.
Então há uma violência política, há uma ofensa de gênero no nosso entender e por entender dessa forma exercendo a cidadania e exercendo o papel da própria OAB que se deu a notícia desse fato ao Ministério Público e que solicitou a Assembleia Legislativa que verificasse a quebra de decoro por parte dele inclusive com desobediência a constituição estadual.
Leiagora - Também no âmbito do Legislativo estadual, uma comissão formada por homens foi criada na ALMT com o intuito debater políticas de combate ao aborto no estado, sem a presença da única parlamentar nessa comissão. Esse contexto, de políticas públicas voltadas especificamente para o público feminino e sem a presença de uma mulher, não pode favorecer a perpetuação de uma espécie de violência de gênero?
Glaucia Amaral - Quanto à frente parlamentar em si, parece ter nascido após a criação de uma frente instalada na câmara dos deputados.
A primeira coisa que chama a atenção é ser uma frente parlamentar de homens, sem mulheres, tratando de algo que ocorre unicamente com a mulher: gravidez.
Compreendemos, nós, mato-grossenses que só há uma deputada mulher no parlamento 'uma quase ausência de mulheres no parlamento que precisa modificar'. Mas no momento dessa Instalação, gostariamos que os deputados tivessem refletido, ao menos alguns que conheço pessoalmente e sei que são pessoas que inclusive trabalham contra o machismo, mas que tivessem refletido como simbolicamente isso é forte e triste.
Sermos destinatárias de decisões de políticas públicas sobre gravidez, sem participar. Exatamente como acontecia quando a mulher era considerada cidadã de segunda classe cabendo todas as decisões aos maridos/pais/parentes… desde que fossem homens.
Só por esse motivo, que é um fundamento de cidadania, já não deveríamos pensar em uma frente parlamentar e sim outra estrutura da casa legislativa que pudesse incluir mulheres como integrantes, de igual para igual.
Responsabilidade democrática, com o estado de direito, é não discutir gestação, gravidez, aborto, sem ter mulheres de igual para igual. Não somos destinatárias de normas. Somos perfeitamente capazes de discuti-las.
Quanto ao aborto, é questão de saúde pública. Aborto em situação de vulnerabilidade é o final de uma tragédia social que não vamos ignorar.
Precisamos falar de educação, precisamos falar de acesso à ginecologista, precisamos falar de abuso sexual de meninas e adolescentes. Precisamos falar do alto índice de casos de estupro e violência sexual em Mato Grosso, do direito à serem atendidas nos hospitais com os kits para prevenção não só de gravidez, mas de doenças. Essa mulher não é um receptáculo, é uma vítima. Um ser-humano que foi vítima de violência.
Isso sim é combater gravidez indesejada e o abortamento. Criar responsabilidades para a vítima, não é.
Precisamos falar de igualdade. Dos sonhos que nossas meninas tem: de serem deputadas? Essa mudança de cultura é que combate o aborto - como outros países já comprovam.
Leiagora - Ainda no ambiente político, a vereadora Edna Sampaio, na Câmara Municipal de Cuiabá, alega sofrer violência racial e de gênero quando é atacada por seus colegas parlamentares. Um caso recente é em relação ao debate sobre a “rachadinha”, quando ela teria se apossado de parte da Verba Indenizatória de funcionários do gabinete dela. Parlamentares apontam um certo abuso do discurso da vereadora. Como a senhora analisa um cenário como esse?
Glaucia Amaral - Eu não conheço o caso específico da vereadora, eu vi algumas notícias no jornal, o que me parece ser necessário é verificar se agiu dentro dos limites da natureza jurídica dessa verba ou não, e se está ocorrendo essa mesma análise da utilização de verba com outros parlamentares.
Leiagora - Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre como é o trabalho da Comissão da Mulher.
Antes de falar sobre isso, eu gostaria de falar mais sobre a violência política contra as mulheres. Bom, culturalmente por muitos séculos em razão de uma divisão econômica global, as mulheres ficavam em um espaço privado, espaço de casa e os homens iam pro espaço público. Então hoje, e já também há pelo menos dois, três séculos, as mulheres estão no mercado de trabalho, estão educadas, são cidadãs, exercem o direito a voto já com cem anos no Brasil, recolhem tributos como outro qualquer.
Então o espaço público já nos pertence, falta o espaço público de poder ser dividido de acordo com a participação da mulher na sociedade. Porém, esse momento de ingresso ele vem sendo marcado por números assustadores de ofensas nos parlamentos, tivemos casos de na Assembleia Legislativa de São Paulo de ter até uma punição, não a quebra de decoro, mas até por um uma ofensa, uma importunação física a uma outra parlamentar.
Temos casos diversos, mas especialmente um índice chama atenção. Há uma regra que em que cada chapa não pode ter mais que 70% de um só gênero e, consequentemente, nem menos de 30% de outro. Então, acaba que como os homens hoje ainda são maioria nesse espaço político, a divisão fica entre 70% de homens e 30% de mulheres.
No entanto, um levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do CNJ, do Ministério Público Federal que criaram um grande canal sobre violência e outras instituições, a própria OAB, o Conselho Federal da OAB, um canal sobre medir essa violência política, a gente foi surpreendido com um índice de absurda maioria de comentários em redes sociais ofendendo as mulheres, muito embora elas estejam somente 30% das candidatas.
Nós vivemos num país que infelizmente a mulher é muito atacada ao ingressar no espaço político. Nós temos decisões do TSE discutindo verba que não chega a ela igual chega aos demais candidatos e também temos decisões discutindo candidaturas laranja. Então, a violência política é bastante grave no Brasil e ao mesmo tempo, a participação da mulher na política é a porta que nós possamos ingressar, sentar nos lugares que nos pertencem e participar das decisões de poder. Nós precisamos estar nos espaços de poder. No Legislativo, no Executivo e no Judiciário A violência política precisa ser contida.
Agora, sobre a Comissão das Mulheres. Bom, a advogada ela se volta especialmente pra questão da advocacia feminina, do mercado de trabalho, verificar se existe, porque em todas as profissões existe violência. A gente verifica por índices até econômicos uma coisa chamada divisão sexual do trabalho, a predominância de mulheres numa determinada profissão, dominância de homens em determinada profissão, a gente verifica questões como diferenças salariais e a Comissão da Mulher, essencialmente, é para ter este olhar em relação à advocacia da mulher, se há discriminação, se há assédio moral, no local de trabalho, e se se não há discriminação de gênero no momento da divisão entre chefia, coordenação, se não há assédio moral e sexual. E respeito às prerrogativas, lutar também pela diferenciação.
Outro trabalho é acompanhar a questão da advogada lactante em relação à atuação nos tribunais, nas audiências, suspensão de prazos, em razão do parto e outras prerrogativas que a mulher advogada possui. Além disso, é lógico que a gente está bastante de olho na questão da possibilidade de violência processual e na luta contra a violência.
Leiagora - Para finalizar, é possível mudar esse cenário de violência no Brasil? Qual é a importância de denunciar?
Glaucia Amaral - Não, não é impossível, não. Nós vamos mudar. Inclusive o Brasil tem meta, muitos países do mundo têm até 2030. A desigualdade de gênero precisa ser diminuída. Ao contrário, essa é uma meta de compromisso assumida na ONU. E os governantes têm que se preocupar muito com isso, porque os índices de violência estão aumentando, nós precisamos realmente denunciar qualquer violência que esteja acontecendo naquele exato momento, e ligar 190.
Em caso de violência, a delegacia da mulher está aberta e recebe todo tipo de violência, inclusive existem boletins de ocorrência que registram as situações de fato. Tem também a Defensoria Pública, Ministério Público, Delegacias da Mulher, Polícia Militar, onde a mulher deve sempre se socorrer nesses órgãos em casos de violência.