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Notícias / Entrevista da Semana

26/09/2021 às 09:00

Aline Figueiredo: o olhar da alma para a arte mato-grossense

A crítica de arte que revelou importantes nomes, como Humberto Espíndola e Adir Sodré, analisa o momento cultural contemporâneo de Mato Grosso

Priscila Mendes

Aline Figueiredo: o olhar da alma para a arte mato-grossense

Foto: Arte - Leiagora; Foto - José Medeiros

Mais que entusiasta cultural, Aline Figueiredo é animadora. Porque vem da alma. A crítica de arte, reconhecida pelas posturas contundentes, pela autenticidade e por revelar artistas visuais mato-grossenses como Adir Sodré, Dalva de Barros, Clóvis Irigaray e Gervane de Paula, teve uma semana agitada: foi homenageada pelo jornalista Rodrigo Vargas com um livro sobre a trajetória dela e com um documentário sobre o cotidiano da personagem; e, oito dias depois, lançou um livro sobre as obras de João Sebastião e ministrou uma palestra. Daquela noite, o que registrou na memória foi o cansaço de autografar tantas vezes.

Não se pode dizer, todavia, que Aline Figueiredo teve uma semana excepcional. Ao contrário, a história dela é marcada por muita vivacidade e altiplanos. São 75 anos de vida, dos quais mais de 50 dedicou às artes do Centro-Oeste, primeiramente como artista visual, depois como aquela que, pelo olhar, percebe e registra as características do que ela mesma considera regional - no sentido de ‘único daqui’, ‘diferente do outro’.

Uma das mobilizações que liderou - ou animação, como ela prefere - levou à criação do Museu de Arte e de Cultura Popular da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), cuja galeria a homenageia. Foi organizadora de algumas edições do Salão Jovem Arte Mato Grossense, que está na 26ª edição este ano.

Aline é autora de oito livros - solos ou em obras coletivas -, dentre os quais “Artes Plásticas no Centro-Oeste” (Edições UFMT/MACP/Cuiabá/1979), “Arte Aqui é Mato” (Edições UFMT/MACP/Cuiabá, 1990); e “Dalva Maria de Barros – Garimpos da Memória” (Editora Entrelinhas, Cuiabá, 2001).

A ampla casa onde mora desde que chegou a Cuiabá, há cerca de 50 anos, ao lado da Praça Popular, guarda e exibe centenas de obras, um acervo mais rico que o de muita pinacoteca. E ela não gosta de emprestar aos museus, “porque o povo não devolve, estraga”...

Há outras belezas lá também: o sabiá visitante, os cãezinhos longevos, os cajus maduros, o pergolado florido e a imensa mangueira (carregada de frutos), escorada, para seguir de pé.

Leia, na íntegra, a entrevista que uma das principais personagens das artes de Mato Grosso concedeu ao Leiagora:



Leiagora - Você é conhecida como animadora cultural. Por que prefere esse termo? Geralmente as pessoas falam entusiasta.

Aline Figueiredo - A animação cultural é um termo antigo ‘pra besteira’. Sou crítica de arte. Mas, mais do que crítica de arte, eu sou uma animadora, eu estimulo. Todo mundo que já surgiu em Mato Grosso [nas artes] foi estimulado por mim, animado por mim. Animar é tudo, vem da alma, né? Animus, animare. E tem que ter animação, significa pompa, trabalhos, isso também é animar, colecionar. O artista é tudo sem dinheiro, comprar o trabalho dele é muito importante.

Leiagora - Rodrigo Vargas fez uma biografia… ele, como todos nós, reconhece seu importante papel para as artes de Mato Grosso, quando Mato Grosso e Mato Grosso do Sul eram um só.

Aline Figueiredo - Centro-Oeste, né? Conhece o meu dicionário? Foi um livro lançado em 1979, 320 páginas, Centro-Oeste inteiro - Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Brasília e Goiás.

Leigora - Uma pesquisa bem aprofundada!

Aline Figueiredo - Barbaridade!

Leiagora - E como você se sentiu sendo biografada?

Aline Figueiredo - Não foi uma biografia… Eu dei umas... umas falas e ele ainda descreveu muita coisa errada… Que biografada, o quê!

Leiagora - Do que você leu, o que mais achou relevante?

Aline Figueiredo - Sei lá! Eu gosto do jeito simples, direto, que ele escreve. Mas eu não sinto que é uma biografia, não. Foram entrevistas que eu dei. Ele gravou, depois escreveu o livro.

Leiagora - É, ele fala que, para fazer uma biografia, precisava de 800 páginas. E foram "só" 200…

Aline Figueiredo - É.

Leiagora - E como foi o documentário? Como foi se ver no cinema e nessa proposta dele [Rodrigo Vargas] de acompanhar o cotidiano?

Aline Figueiredo -  Grande coisa, aquilo! Falei aí, falei aqui, mesma coisa, filmaram… Eu falei muito mais do que aquilo. Mas tudo que ele pôs no livro, ele não colocou no vídeo. É, claro, também para não ficar misturando a mesma coisa… Mas foi muito simples, muito simples… Não achei mistério nenhum…

Leiagora - Você já escreveu livros sobre grandes artistas de Mato Grosso. E este último foi sobre João Sebastião.

Aline Figueiredo - É, escrevi só… Livros sobre artistas, eu escrevi só dois, João Sebastião e Dalva [de Barros]. O resto é coletivo. Catálogos… Textos críticos para todos…

Leiagora - E como foi este momento de avaliar as obras? Do ponto de vista artístico de João Sebastião?

Aline Figueiredo - Eu sou crítica de arte, filha. Eu mexo com isso desde os 15 anos [de idade]. Estudei em São Paulo, estudei Crítica de Arte, aprendi na marra… Isso aí… A melhor coisa do mundo é entender de pintura. Eu fico com dó de quem não entende. Porque não é só figura. É uma coisa complicada. Curso de História da Arte, quantas vezes que eu já dei?

Você assistiu àquela palestra, lá?

Leiagora - Não pude ir…

Aline Figueiredo - Pois é, não assiste à palestra e depois quer saber.

Tem que estudar pra besteira, tem conhecer, eu não acho nada…

Leiagora - Você escreveu um livro que se chama ‘Arte Aqui é Mato’. E esse título é amplamente reproduzido quando se fala da produção artística em Mato Grosso. Você pode falar sobre esse conceito?

Aline Figueiredo - Ser mato é existir em abundância. E nós moramos num estado chamado Mato Grosso. O grosso significa um grande volume, uma grande espessura, denso. Não é só arte que aqui é mato. A corrupção aqui é mato. Banditismo aqui é mato. Bandidagem… A corrupção aqui no Brasil é mato! Desde o começo do mundo. E também tem a arte que é mato!

Aí, os artistas… Gervane [de Paula], por exemplo, que é um excelente artista… Ele colocou uma espingarda e tirou o teor substantivo da palavra ‘mato’, porque ‘arte aqui é mato’, aí é substantivo. Tirou o teor substantivo da palavra ‘mato’ e colocou ‘Arte aqui eu mato’. O verbo ‘é’ ficou ‘eu’, conjugou na primeira pessoa do singular. E fez verbo, de matar…

Leiagora - Essa releitura, essa transformação também é característica das artes.

Aline Figueiredo - Os artistas fazem o que eles quiserem né? Qualquer um… não tem uma ditadura, uma sequência...nada disso! É tudo muito imediato. Não só ele, como diversos.

Você está vendo aquele quadro ali? Aquele correntão? Por quê? É do Sebastião Silva. Ele fez uma alusão a esse correntão que usa dois tratores fortíssimos, um de cada lado, e pega esse correntão ‘desta grossura’ e vai arrastando na natureza e derrubando a mata… Os artistas de Mato Grosso têm muito essa questão de denúncia, de comentário crítico social, da devastação da Amazônia… Eles todos têm essa consciência crítica. Pode ver que é um arte séria, a gente mora nesse mundão brabo e sujo, no entanto nós temos uma arte contemporânea.

E tem gente que chama de regional. Parece que boi só tem aqui, tatu só tem aqui, parece que onça só tem aqui… é internacional! Porque não é o tema que faz a arte ser regional, é a forma. Pintura é forma! Aqui dá muito disso: se uma pessoa vai lá em Nova Iorque e faz uma pintura no Central Park, elas acham que é diferente de se for aqui na Praça Popular e fazer uma pintura. O que vai valer é a forma, não o lugar. Não é Paris, não é Nova Iorque, é a forma. Tem que ser bom aqui, no Japão. Aqui e em toda parte.

A gente tem uma arte forte, bem conceituada, não é? E também que nós, da universidade [UFMT], a gente trouxe muitas exposições importantes de gente de fora.... e que, infelizmente, as coisas aqui na universidade… Sai um prefeito, entra outro, desmancha o que o outro fez… sempre foi assim… Cresce pra baixo, à moda rabo de cavalo.

Leiagora - A galeria do MACP empresta seu nome. Você é grande animadora desse processo de criação do museu. E o museu segue fechado por normativas da de biossegurança da UFMT...

Aline Figueiredo - As universidades… Tudo ‘bolsonarou’, o que eu posso fazer? ‘Cê gosta dele? (...) Ah, e quem que gosta? O povo lá gosta… É tudo assim, o Brasil ‘tá indo pra baixo. A universidade sempre foi vanguarda e agora estamos com esse processo: cortou verba, verba mínima… [suspiro profundo] É isso!

Leiagora - Estamos em mais uma retomada do Salão Jovem Arte, depois de cinco anos de intervalo…

Aline Figueiredo - É, o Salão… faz a conta aí, ele surgiu em 1976, se ele não tivesse faltado nada, olha quantos anos ele já teria! Muitos!

Tem um salão lá em Santa Catarina que já tem 80 anos! Mas aqui não! Quando o Salão fez dez anos… e quando ele ia fazer 11 anos, já tinha tido intervalo.

Quando ele estava fazendo 11 anos, o secretário [de Estado de Cultura] que entrou falou: ‘ah, os artistas já estão ‘tudo’ maduro, não são mais jovens'! Mas não é o artista que fica maduro, é a arte que amadurece e, quanto mais madura, mais nova ela fica. É jovem arte.

Aí, ele mudou para 1º Salão de Artes Plásticas de Mato Grosso [em 1989, governo de Carlos Bezerra]. Porque todo mundo aqui quer fazer o primeiro. Aí, Gervane [de Paula], que é um líder, um gigante, movimentou e, no outro ano, que fez o 11º. Aquele dele só ficou um [risos].

Quer dizer, ele [o secretário] teve o primeiro salão dele, mas no outro ano teve o 11º [Salão Jovem Arte]. No dele, até o regulamento era o mesmo, só mudava o nome. Eu posso com essa gente?

A arte que é jovem. Não é o artista [que precisa] ser jovem.

Falaram que eu tinha complexo de Peter Pan. Quisera eu. Quisera poder voar como o Peter Pan.

Leiagora - E esta edição, que você deve estar acompanhando. Qual a sua expectativa?

Aline Figueiredo - Não tenho a menor ideia… ‘Tá vendo este artista aqui [apontando para esculturas de Pedro Pires]? Já foi cortado do Salão Jovem Arte.

André Balbino (acompanhando a entrevista) - Parece que está havendo o mesmo equívoco, eles estão pensando em um artista… [desconhecido]. Sendo que um artista desses daria um peso danado pro Salão!

Leiagora - Na perspectiva de revelar?

Aline Figueiredo - Eles não sabem revelar nenhum. Ninguém nunca revelou um artista aqui. Só eu. Depois que eu escrevo, que eu falo, daí todo mundo começa a ver: ‘aaaah’... A irmã deste menino aí [apontando para a tela de Sebastião Silva], Neide Silva, vai participar do Salão. Já fez uma exposição… Tudo este ano. Ela surge, manda aí no computador, eu olho, vou lá na casa [dela], sabe? É assim que a gente faz. Mas os outros só pegam já pronto. 

Tá tendo o mesmo equívoco.

Com a Lei Aldir Blanc, eu recebi diversos artistas aqui.

Entrevista foi o que teve. Cada dia sobre um artista. Sobre Gervane? Eu enchia de Gervane aqui [apontando as paredes da varanda]. Nunes? Eu enchia de [Benedito] Nunes aqui.

Aquele salão lá tem 800 telas. Ou mil. Lá embaixo - casa muito grande - tem uns três quartões cheios, cada caixa enorme, gigantesca…

Leiagora - Essas telas, você compra?

Aline Figueiredo - Compro! Não ganhei nenhuma e não gosto de ganhar!

Leiagora - Para incentivar o artista?

Aline Figueiredo - Claro. Compro, compro, compro e não é de hoje! Desde os anos 1970.

Leiagora - Quantas obras você tem nesta casa?

Aline Figueiredo - Ah, não, eu nunca contei, ‘larga mão’!

Leiagora - A lei Aldir Blanc deu uma movimentada boa nas artes…

Aline Figueiredo - Deu! Ótimo! E o secretário [Beto Dois a Um] é um rapaz jovem, é músico… Já deu outra conotação… Um rapaz animado! Fez questão de levar para o interior de Mato Grosso! Já dei cursos de História da Arte em diversas cidades do interior… E ele é um rapaz incrível! Ele é muito animado! Essa lei jogou dinheiro e ele também sabe fazer uma política cultural… Está conquistando Mauro Mendes… [suspiro profundo].

Legendas das fotos do corpo do texto (crédito - Priscila Mendes):
1 - Aline Figueiredo apresentando obras na própria varanda
2 - Telas de João Sebastião do acervo pessoal de Aline Figueiredo
3 - 'Correntão', de Sebastião Silva
4 - Bois de Humberto Espíndola, artista com quem Aline Figueiredo se casou
5 - Esculturas em pedra, de Paulo Pires

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1 comentário

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  • Valdecy feliciano de oliveira 08/10/2021 às 00:00

    Muito bom . #valdecybebidas

 
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