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17/04/2022 às 10:00

Filhos esquecidos: quem são as ‘crianças’ vítimas de abandono acolhidas em lar em Cuiabá

O Leiagora visitou o lugar e conheceu histórias como do menino que era criado como cachorro e a ‘Cinderela cuiabana’

Denise Soares

Filhos esquecidos: quem são as ‘crianças’ vítimas de abandono acolhidas em lar em Cuiabá

Filhos esquecidos: quem são as ‘crianças’ vítimas de abandono acolhidas em lar em Cuiabá

Foto: Denise Soares/Leiagora

Abandono, maus-tratos, abuso e rejeição. Foram deixados para trás, simplesmente esquecidos pelos próprios pais e pela sociedade. Essas são as memórias em comum dos 17 moradores do Lar Doce Lar, localizado em Cuiabá.

A instituição cuida de pessoas em regime de abandono e que possuem algum tipo de deficiência física ou mental.

O Leiagora visitou o lugar e conversou com a coordenação e funcionários, figuras mais próximas de uma família que essas pessoas conheceram um dia na vida.

Eram crianças quando foram abandonadas só por serem quem são ou tiveram que ser resgatadas por sofrerem negligência na própria casa onde nasceram. Os moradores, atualmente com idades entre 30 a 40 anos, têm a mentalidade de adolescentes.

As histórias de vida de alguns deles foram contadas pela coordenadora Sarah Arnoldi, pelo diretor-geral do Ciaps Adauto Botelho, Paulo Henrique Almeida, e pela enfermeira Sônia Duarte, que atua há 28 anos na profissão, considerada a ‘tia’ dos moradores.

Antes de serem acolhidos no Lar Doce Lar, isso nos anos 2000, ‘os filhos esquecidos’ passaram por antigos orfanatos na capital e até a extinta Fazendinha, o que atualmente seria um centro de detenção para menores infratores.

“A patrulha [policial] passava nas ruas e saía recolhendo, fazendo um ‘limpa’ na cidade, mesmo não sendo infratores, alguns ficaram no antigo Pomeri. Até que o Adauto acolheu essa unidade, mas precisavam de um lar, pois não eram pacientes e nem precisavam ficar internados”, disse Sarah.

O Lar começou a ser equipado entre os anos 2005 e 2006. Eram 26 moradores que passaram a ter atendimento médico especializado e com amparo jurídico na peculiaridade de cada caso. Dos moradores iniciais, a direção conseguiu reintegrar cerca de oito que voltaram para as respectivas famílias.

“Todos os moradores que estão aqui são aqueles que não identificamos familiares ou que não têm condições de serem devolvidos. É melhor estarem aqui do que sofrerem abuso, violência e maus-tratos”, afirmou a coordenadora.

Mesmo sendo de portas fechadas (não recebem mais moradores de fora nessas circunstâncias), o Lar Doce Lar ouve histórias parecidas de famílias que abandonam pessoas com deficiência na capital.

Os familiares argumentam que não conseguem mais cuidar dos entes e pedem ajuda.

“É muito difícil a vida do cuidador. Mas o abandono é muito mais. O estar abandonado e ser abandonado, é muito mais sofrido”, acrescentou Sarah.



Quem são as ‘crianças’


Todas as 17 pessoas acolhidas no lar têm histórias de abandono muito parecidas. Em todos os casos, carecem de documentos pessoais fidedignos, já que foram deixados pelas famílias sem qualquer tipo de informação básica como nome e idade corretos.

São nove mulheres e oito homens que convivem como uma família de irmãos. Eles possuem rotina, alimentação balanceada, vão para escolas especiais, como a Apae-MT, e alguns trabalham. Somente os que precisam de cuidados intensivos e integrais ficam na casa.

Os moradores ouvem música, assistem televisão e filmes, fazem atividades, piqueniques e passeios. A estrutura física, que pertence ao governo estadual, foi reformada e entregue recentemente.

Vivendo como cachorro

Uma das histórias mais chocantes e complexas é de Eric*, hoje com 31 anos. Ele vivia em um canil na casa da família, em Cuiabá. O garoto fazia as necessidades no canil, comia lavagem em um pote de margarina e, às vezes, as próprias fezes. Sem conseguir falar, era difícil enxergá-lo como um ser-humano.

Diferentemente das famílias ‘perfeitas’ retratadas nas propagandas do pote de margarina, a mãe de Eric* não cuidava mais do filho e o deixava no quintal, como um cachorro. Ele tem deficiência intelectual e sinais de autismo.

Um vizinho descobriu o que acontecia na casa da família e denunciou às autoridades.

“Hoje ele se senta à mesa e come com colher. Ele tem movimentos estereotipados, agressivos, que é o que ele recebeu a vida toda, mas isso já melhorou bastante”, avalia a coordenadora.


As cicatrizes de Fabiano

Fabiano*, de 30 anos, nasceu saudável. A mãe era prostituta e o pai, usuário de droga. Ele tinha seis meses de vida quando foi arremessado pelo pai contra a parede de casa, na cidade de Novo São Joaquim, interior mato-grossense. O pai teve um rompante de raiva durante uma briga com a mulher e machucou gravemente o menino.

Fabiano ficou seis meses internado, em coma, em Cuiabá. A agressão do pai resultou em sequelas e o menino perdeu massa encefálica.

Fabiano cresceu no interior, o pai morreu e a mãe deixou o prostíbulo, se tornando diarista. A vida do garoto continuou gerando cicatrizes: como ficava sozinho, ele entrava nas casas de moradores para pedir comida ou apenas à procura de companhia.

Ele era recebido com agressões e até água quente para espantá-lo.

“Se você quer ver o quanto uma pessoa já sofreu na vida, é só raspar a cabeça dela. Tem um monte de cicatriz. Quanto maior o número de cicatriz na cabeça, maior o sofrimento. As pessoas batem na cabeça para não deixar marcas. O Fabiano é uma dessas pessoas que sofreu”, lamentou Sarah.

Fabiano recebeu a visita da mãe uma ou duas vezes, mas não tem vínculo afetivo com ela. Recentemente os funcionários souberam pela televisão que a irmã dele, também prostituta, foi morta a facadas dentro de um prostíbulo na cidade da família.

‘Cinderela cuiabana’

Joana*, tem 42 anos. Quando criança, estava em um ônibus, acompanhada da mãe, quando sofreram um acidente. A mãe morreu e Joana teve traumas e sequelas. O pai entrou com processo e passou a receber indenização pela morte da mulher. Com o passar dos anos, ele conheceu outra moça, se casou e teve duas filhas.

A vida foi seguindo na nova família, até que o pai de Joana morreu. A história da ‘Cinderela cuiabana’ começou aí: assim como no conto de fadas, a menina órfã ficou sob a guarda da madrasta.



A mulher cruel e as irmãs obrigavam Joana a fazer todo o trabalho doméstico. Ela era excluída enquanto as irmãs tinham de tudo e ganhavam tudo que queriam. Além disso, se beneficiavam das condições financeiras herdadas pela jovem.

O caso da Gata Borralheira de Cuiabá foi parar no Ministério Público, que interferiu na situação e conseguiu respaldo judicial para retirar a menina da madrasta e das irmãs.

Atualmente Joana tem independência financeira e consegue investir na própria saúde e vida, sem interferência da família.

Sem pais, sem carteira!

Márcia da Silva*, de 43 anos. É uma das moradoras mais antigas, veio da Fazendinha. Deficiente, ela foi resgatada, mas ninguém sabia o nome dos pais dela. Com o passar dos anos, a coordenação começou o processo de inserir a moradora no mercado de trabalho.

Os funcionários a acompanharam até uma central de emissão de carteira de trabalho. Para a surpresa de todos, o Ministério do Trabalho se recusou a emitir a carteira por causa da ausência do nome dos pais dela no documento de identidade.

“Fomos parar na delegacia. Eu falei para o delegado: ‘o senhor vai repetir com ela o que a vida fez? Não vai deixar ela trabalhar porque não tem o nome da mãe e do pai e a culpa é dela?’ Conseguimos a carteira”, riu Sarah.

A carteira veio há dois anos. Márcia ainda não conseguiu trabalho, mas está feliz por ter o documento.



Abandonou uma criança e enterrou um homem


Gustavo*, de 26 anos, estava dormindo quando morreu em um dos quartos do Lar, há seis anos. Os funcionários se organizaram para reunir a papelada e providenciar o enterro. Deficiente intelectual, ele foi abandonado pelo pai em uma creche, em Cuiabá, quando tinha apenas 4 anos. A família nunca voltou para buscá-lo e jamais o procurou.

Enquanto corriam atrás da burocracia do enterro, os funcionários foram surpreendidos por um idoso que se apresentou como avô de Gustavo. Até aquele momento a existência do avô e de qualquer familiar era zero.

“O avô disse que queria enterrar o neto, como última ação. Resistimos, afinal, ele nunca havia recebido uma visita durante todos esses anos. Concordamos e deixamos que o avô enterrasse o neto, sem velório”, lembrou a coordenadora.

Os ‘irmãos’ de Gustavo, os funcionários e Sarah foram até o cemitério para acompanhar o enterro. O local estava lotado. Outra surpresa: todas as pessoas que se aglomeravam no cemitério eram da família de Gustavo.

A mãe do rapaz estava inconsolável. Acompanhada de duas filhas pequenas, ela chorava, gritava aos prantos e implorava para abrir o caixão do filho que havia abandonado.

“Sabe cena de filme? Estávamos vendo. Quando abriu o caixão, essa mulher entrou em desespero: ela havia abandonado um guri de quatro anos e enterrou um homem. Gustavo era lindo, alto. Saudável. Era perfeito”, disse a coordenadora.

Sarah e os demais funcionários tentaram não julgar a família de Gustavo e demonstraram empatia com a situação.

“Eu apresentei todas as pessoas que cuidaram do filho dela. Ela agradecia e chorava. Nessas horas a gente não consegue se revoltar. Como ser humano, temos que entender. Da nossa parte, fizemos até o fim”, finalizou.

*A reportagem usou nomes fictícios para preservar a identidade dos moradores
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1 comentário

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  • Maria Gabriela Mazzetti 20/04/2022 às 00:00

    O trabalho desenvolvido dentro desse espaço é de acolhimento e amorosidade. São histórias que machucam nossos corações e tocam a alma.

 
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