Tributarista explica impactos da ‘Lei do Calote’ para o servidor municipal
A advogada Ivana Krutinsky conversou com o Leiagora e ajudou a entender um pouco mais sobre a lei que está nos holofotes de Cuiabá e pode complicar a vida do prefeito Emanuel Pinheiro
Desde o dia 10 de agosto deste ano um projeto de lei de autoria do Executivo Municipal de Cuiabá está nos holofotes não só da política da Capital, mas também é alvo de uma investigação do Ministério Público Estadual (MPE). O Projeto de Lei nº 31.564/2023 é um pedido de parcelamento de uma dívida milionária da prefeitura com diversos entes federais e estaduais e ganhou o apelido de “Lei do Calote”.
De início, o prefeito Emanuel Pinheiro (MDB) havia dito que o valor da dívida seria de R$ 165 milhões, todavia, após o MPE instaurar um inquérito civíl e requisitar a gestão municipal uma atualização dos valores, a prefeitura apresentou um detalhamento da dívida que chega a um montante de R$ 228.485.554,72, sendo que, se for contar os juros, correção monetária e o parcelamento de cinco anos, como diz no projeto de lei, esse valor pode chega a quase R$ 300 milhões.
Muitas dúvidas surgiram. O prefeito diz que essas dívidas são patronais, mas o detalhamento mostra que uma grande parte dos funcionários municipais tiveram quantias de FGTS e INSS descontadas e não repassadas. Isso configuraria crime? Qual é a pena?
Para ajudar a entender esse cenário e sanar dúvidas quanto a esses temas, o Leiagora conversou com a advogada especialista em direito tributário e vice-presidente da Comissão do Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Cuiabá, Ivana Krutinsky.
A tributarista explicou que ainda é muito cedo para falar sobre um crime propriamente dito e explicou quais são as dificuldades que o funcionário municipal poderá encontrar quando se deparar com o não recolhimento do FGTS e INSS.
Confira a entrevista na íntegra:
Leiagora - Muito se tem discutido sobre o projeto de lei da prefeitura de Cuiabá que trata da renegociação de uma dívida milionária. Essa discussão ganhou um destaque muito grande por conta de se tratar de débitos de INSS e de FGTS. Durante um tempo, o prefeito dizia que era uma dívida patronal, porém foi descoberto que também se tratava de dívidas trabalhistas. Daí surgiu a dúvida, o que é uma dívida patronal e o que é uma dívida trabalhista?
Ivana Krutinsky - Quando analisamos melhor, minuciosamente o detalhamento dessa dívida, a gente pode ver que tem sim um pouco dessa situação patronal, que seria o que a empresa tem que pagar a título da previdência, porém tem também situações de INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], FGTS [Fundo de Garantia do Tempo de Serviço], multas, até mesmo PIS [Programa de Integração Social], Cofins [Contribuição para Financiamento da Seguridade Social] e CSLL [Contribuição Social sobre Lucro Líquido]. Então o que acontece? Não necessariamente todos eles são patronais, alguns são descontados em folha do funcionário e não repassados à Receita Federal. Então até mesmo algumas dívidas um pouco mais antigas já foram constituídas em dívida ativa para a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e alguns ainda estão tanto na Caixa Econômica quanto na Receita Federal, mesmo ainda como uma pendência a ser renegociada.
Leiagora - Ou seja, estamos falando de um não recolhimento desses tributos dos funcionários da prefeitura. Pode-se dizer que isso configura um crime?
Ivana Krutinsky - Ainda não. Porque eles podem ser depois de uma apuração, depois de uma investigação, chegar à constituição de um crime, de uma apropriação indébita pelo município ou pelos gestores, mas ainda não. Por quê? Apesar de ter tido um desconto na folha, principalmente sobre esses funcionários, ainda foi uma falta de repasse. Não necessariamente foi tirado um dinheiro e ele sumiu. Esse dinheiro não foi repassado. Pode ter sido uma falha de gestão, uma falha de contas, pode ter sido algum tipo de má administração, que não configuraria ainda um crime logicamente exposto. Deve haver uma investigação sobre isso.
Leiagora - Então, falar neste exato momento que houve uma apropriação indébita de tributos é muito cedo?
Ivana Krutinsky - É muito cedo. Até mesmo porque algumas dessas dívidas nem se constituíram como dívidas ativas. Isso significa que, traduzindo aqui numa forma mais fácil, ela nem virou um título que você pode cobrar. Então, ela ainda está em andamento. Não tem nem como se falar em crime ainda das dívidas que estão abertas no sistema, que ainda não se consideraram um título executivo, uma certidão de dívida ativa, porque ainda nem virou um processo de cobrança, um processo de execução. Então ainda é muito cedo para se falar em crime dessa situação.
Leiagora - Caso seja configurado mesmo essa apropriação em indébita de tributos, o gestor municipal, no caso um prefeito, ele pode ser condenado criminalmente? Qual seria a pena?
Ivana Krutinsky - O prefeito é um cargo de representação do município. Não necessariamente ele que faz a gestão exatamente no caixa, mas ele nomeia os gestores de toda a administração pública que vão trabalhar ali com ele. Ele poderia responder futuramente uma improbidade administrativa, mas não a apropriação indébita. Porque a apropriação indébita tem que se apropriar disso. Lógico, pode ser que tenha acontecido, pode ser que haja uma apropriação indébita de cofres públicos, mas teria que fazer o lastro desse dinheiro, teria que fazer uma investigação de uma forma diferente.
Então assim, tem uma falta de pagamento da tributação. Está devendo a Receita Federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. O que acontece? Está tendo um erro de gestão? O que ele responderia? Pela improbidade administrativa, pois ele é responsável por administrar os bens públicos, administrar a organização pública.
Leiagora - Neste caso, isso tem que ter um dolo ou pode ser na forma culposa?
Ivana Krutinsky - A improbidade administrativa só permite a forma dolosa, ela não tem a forma culposa, tem que ter o ânimo, tem que ter a vontade de deixar de pagar, de desviar esse dinheiro, de desviar esses valores, esses bens. Mas também, o prefeito pelo cargo dele, e aí tem várias discussões sobre isso, ele não pode se omitir, se livrar da culpa por omissão. Então eu não poderia virar e falar: “eu não sabia”.
A responsabilidade do seu cargo é acompanhar, revisar as contas, estar por dentro do que está acontecendo. Então existe essa situação de omissão, mas também não permite a forma culposa, tem que ter o dolo. Olhando as contas, sendo que dá um valor muito grande, mas tem várias contas diferentes, várias dívidas de origem diferente e que estão em vários lugares diferentes. Não necessariamente seria uma situação clara de algum crime, mas sim realmente de uma má gestão. Aí sim ele poderia ser culpado pela má gestão disso futuramente se realmente não conseguir organizar essas contas públicas.
Leiagora - Falando do FGTS que não foi recolhido. Esse trabalhador, quando ele precisar sacar esse FGTS, o que acontece? Não tem nada lá?
Ivana Krutinsky - Não tem nada. Esses do FGTS, que era para ter sido pago, que estão nessas contas ainda, principalmente da empresa Cuiabana de Saúde Pública, que estaria na Caixa Econômica Federal, realmente não foi depositado lá. Está devendo a Caixa Econômica desde 2019 e 2023. Esses funcionários não conseguem sacar porque não tem esse valor. Inclusive é bloqueado o saque até o ordem do pagador, o patrão vamos dizer assim, regular todas as contas.
Leiagora - Ele vai ficar a ver navios?
Ivana Krutinsky - Ele vai ficar. Ele não vai conseguir sacar, pegar algum tipo de financiamento pelo FGTS, ele não consegue.
Leiagora - E quanto ao INSS, como que fica a aposentadoria? Ele vai perder esse tempo de aposentadoria porque não foi recolhido?
Ivana Krutinsky - Isso não. Você vai ter direito à sua aposentadoria, ao INSS pelo seu próprio tempo de trabalho. Então, assim, tem na própria lei do INSS, na própria lei da aposentadoria, quando você vai conseguir ter essa aposentadoria, por idade, por algum tempo de serviço, mas você não vai deixar de ter essa aposentadoria porque algum dos seus patrões não recolheu, ficou devendo. Quem tem que se responsabilizar é o patrão e o governo que tem que cobrar dele depois. Mas você consegue se aposentar. Você só não consegue sacar FGTS, mas consegue se aposentar.
Leiagora - Como estamos vendo aqui, ainda existem duas empresas terceirizadas, a Empresa Cuiabana de Saúde Pública e a Limpurb. Essas empresas podem ser responsabilizadas? Onde começa essa responsabilização da empresa e passa para a gestão municipal?
Ivana Krutinsky - Teria que ver dentro dessa empresa como foram feitos os repasses e depois chegar no município. Porque assim, o município pagou essa empresa ou deixou de pagar a empresa? Talvez, como já está havendo uma discussão, o prefeito já está dando entrevistas, está todo esse burburinho, pode ser que não houve esse repasse do município. Por isso que já está se falando em crime, em improbidade no município e tudo mais. Porque estamos falando de 2017, 2018. Eu acho que desde 2017, 2018 ficou dentro da empresa e agora começou toda essa discussão justamente porque não deve ter havido repasse.
Leiagora - Sobre a questão da pena. Não existe uma pena de prisão, mas sim de devolução desse dinheiro que não foi devidamente descontado, é isso mesmo?
Ivana Krutinsky - Isso, na verdade vai depender do crime, mas assim, quando você comete um crime de falta de pagamento pode sim chegar a uma investigação criminal, mas se você pagar essa quantia que você está devendo não existe mais o crime porque o crime era deixar de pagar a previdência, deixar de pagar a Receita Federal. Então se você de repente tem uma multa e, por exemplo, eles devem também CSLL, multas, se eles estão devendo e a empresa paga, eles pagam esse valor, mas não serão presos por conta disso. Não por conta desse valor. Há menos que tenha investigação criminal que prove outras demandas, como a improbidade administrativa, seja outros crimes elencados nessa situação, como fraude, simulações e outros crimes ali. Mas assim, só você deixar de pagar não necessariamente constitui o crime. Na verdade constitui, mas não que você vai ser preso só por deixar de pagar. Tem que haver mais elementos.
Leiagora - Isso pode ser considerado uma pedalada fiscal?
Ivana Krutinsky - Ainda está muito cedo também para falar disso. Nem todas as dívidas ainda são dívidas ativas. Apesar de ter algumas coisas um pouco antigas, tem muita coisa nova também. Para mostrar que está sendo realmente uma pedalada fiscal, deveria haver a constituição de algum crime. Aí sim, constituiu o crime realmente, foi apropriação? Aí você falaria em pedalada fiscal. Acho que ainda podemos tratar de uma investigação sobre isso.
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